quarta-feira, dezembro 31, 2008

Pensamento para 2009

“There are two ways to conquer and enslave a nation.
One is by sword. The other is by debt.”

John Adams
1735-1826

sexta-feira, dezembro 26, 2008

Natal 2008

Relembro por uns instantes
por uns sumários instantes,
várias vezes, todos os dias
que há tanta gente como eu mesmo
para quem o Natal não é gáudio
para quem o Natal é fingimento
e tanto se me dá como se me deu

assim transponho a hipocrisia
esquecendo-me da solidão
e do carrinho que ninguém me pagou
da casinha que bem velhinho saldarei
dos muitos euros que já gastei
em ofertas que ninguém ligou

e por isso decidi embriagar-me este ano
de exultação, vinho e camarão
enterrado na elevação
repisando os sorrisos de todos os anos
destes Natais tão tacanhos
esquecendo a miséria
com uma valente borracheira

Miguel Godinho
Uma vida de sonho

Descrevia as suas façanhas como se só você existisse na plenitude. Uma casa desenhada por si mais parecia uma mansão e a aldeia, uma metrópole. Pintava-se de ouro para que o amassem na grandeza. Como se projectava grande aos seus próprios olhos, que imensidão, a sua miséria. Algo correu mal, Sr. Doutor Todos-os-Santos. Algo correu mal nessa sua corrida desenfreada por um sonho aparentemente com sentido. Algo correu mal, Sr. Doutor Todos-os-Santos, consigo e com a Sra. Doutora Todos-os-Santos. A sua filha agora cheira cocaína como aqueles carrinhos que aspiram as folhas caducas da Avenida da Liberdade nos meses de Outubro. Mas tudo bem. O Sr. Doutor desculpa e fecha os olhos na mesma proporção que abre a carteira. O seu filho estudou no colégio francês. Ainda que desde há muito tenha por hábito ir buscar os miúdos ao Parque Eduardo Sétimo para lhes oferecer uns pares de ténis. Todas as sextas-feiras. O Sr. Doutor desculpa e fecha os olhos na mesma proporção que abre a carteira. A vida não acabou da forma que esperava, Sr. Doutor. Descrevia as suas façanhas como se só você existisse na plenitude mas essa plenitude afinal não era tão plena assim, Sr. Doutor Que-se-fodam-todos-os-Santos. Deixe lá isso. Vale agora essa imagem que, ao longo dos anos, com tanto trabalho construiu. Ainda que ultimamente só pense numa coisa: arranjar uma arma e acabar com tudo.

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Os nossos dias (23)

Pouco a pouco vamos apodrecendo
na ilusão de sermos mais nós
sem nunca conseguirmos sê-lo em absoluto
O ritual de caminharmos sem destino
faz de nós uma indefinição
reflectida na confusão dos dias,
na verdade da derrota.
Conseguiremos algum dia
ser imunes ao fastio?
Nunca a fuligem das horas
foi tão óbvia quanto agora
A verdade é que ao olhar-me ao espelho
cada vez mais me demoro no vazio

Miguel Godinho

quinta-feira, novembro 27, 2008


O blog http://lugaresdosul.blogspot.com/ distinguiu este blog com o PRÉMIO DARDOS.


O Prémio Dardos consiste em "reconhecer os valores que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. que, em suma, demonstram a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web.


Quem recebe o “Prémio Dardos” e o aceita deve:


1. - Exibir a distinta imagem;

2. - Linkar o blog pelo qual recebeu o prémio;

3. - Escolher quinze (15) outros blogs aos quais entregar o Prémio Dardos.


Nesse sentido, assim que possa, procederei à escolha dos 15 blogs aos quais atribuirei o prémio.

sexta-feira, novembro 21, 2008

I am Jack's Smirking Revenge

Os nossos dias [22]

Deixemo-nos ir em nós próprios
à espera de sermos só nós próprios

This is your life and it’s ending one minute at a time
Only after disaster can you be resurrected
It’s only after you lost everything
that you’re free to do anything

tudo acaba um dia, mon amour
é bom que não nos preocupemos em demasia
só por causa da negligência, antes do fim
puxemos fogo às aparências, mon amour
deixemos que nos cunhem o semblante
eles que se fodam, mon amour

eles que se fodam

Miguel Godinho

segunda-feira, novembro 17, 2008

Os nossos dias (21)

A intensidade a cada esquina do corpo
nesse teu olhar bélico onde
cada imagem sabe a sexo
ou não fosses tu a metáfora da carne

sempre que te visito na memória
há uma ferida que se infecta:
o teu nome impúdico a salivar na boca
num aroma genital que me afoga a razão

nos espinhosos dias que se sucedem

aprendemos a deitar-nos de novo naquela cama
permitindo a pornografia da memória

Miguel Godinho

quarta-feira, novembro 12, 2008

Eras tu a virgem solene

Nos ventos negros da distância
o ajuste selvático da memória
e à parte da ilusão, o som da loucura


eras tu a virgem solene que apodreceu na recordação
ver-te ao longe é como ver-te ao perto
continuas arruinada numa esfera inerte
quase como naquele quarto quente
onde começámos corroídos logo à partida

no entender de quem julgava ver-nos nus
foi sempre assim meu amor, meu velho amor
mas o tempo cicatrizou-nos esse amor
ao menos ainda
consigo redigir sem borrar o teu nome
nesta folha branca e imaculada

Miguel Godinho

quarta-feira, novembro 05, 2008

O pulsar ardente das mãos espancadas

Ainda te vejo ao canto da loja
por entre os lenhos húmidos
dos alvoreceres coimbrães
e apetece-me agora dizer-te no silêncio:
claro que os dias são breves
e que o mundo gira sempre
à mesma velocidade
claro que o tempo se demorou
no pulsar ardente das mãos espancadas
que trémulas aguardaram
as chuvas da velhice

Tudo se esgotou de uma forma indizível
tal como me disseste: para o ano já cá não
estarias de novo de braços abertos
à espera que a vida te levasse.
Afinal, desde sempre foste tu quem carregou

a vida às costas

Miguel Godinho

quinta-feira, outubro 23, 2008

Queria ser o que escrevo. Entretanto vou-me contentando em escrever o que sou.

Miguel Godinho

segunda-feira, outubro 06, 2008

A metamorfose

A metamorfose geralmente acontece na segunda metade
dos vintes, quando nos apercebemos da absoluta necessidade
de morrer um dia, quando começa a apetecer
a toda a hora gritar que estamos atulhados e que queremos
a inocência de volta porque o silêncio interior
se torna já impossível de suportar e os incidentes antigos
complicados de esconder. De dois tipos as mutações,

qualquer um deles, de ingresso obrigatório: a perda definitiva
da limpidez e a transformação gradual do nosso ser numa coisa
que nunca mais olhará para trás sempre que a vida colocar
de frente a possibilidade de obter mais e mais e mais

e sempre mais, mesmo que para isso se torne necessário
recorrer à navalhada nas costas de alguém;
ou a passagem por um longo período de desnorte mas que
mais tarde poderá dar acesso ao paraíso do nosso ser onde

a toda a hora é possível para sempre ser o que quisermos ser,
e sê-lo despreocupados com o desenrolar da viagem,
extasiados pelos sonhos adolescentes que decidimos recuperar
e viver, conscientes da sua absoluta necessidade, custe o que
custar, doa a quem doer. Há no entanto, um terceiro caminho,
que evita qualquer um dos primeiros: arrematar-se a viagem,
fechando os olhos e dormindo para sempre na quietude
do silêncio eterno, protegidos da violência da memória
e da necessidade de mutações.

Miguel Godinho

sábado, outubro 04, 2008

Os nossos dias (20)

(no regresso a casa, ao fim do dia,
gostamos sempre de reflectir um pouco
sobre mais este dia com que Deus nos abençoou
enquanto não chegamos para comer, dormir e esquecer)


Um dia atrás do outro a caminhar errantes
pelo trilho da cegueira
ultimamente são assim os nossos dias
trajados de um veludo rasgado
num anseio constante
por um devir melhor preenchido
nada mais falhado que esperar
pelos efeitos da luz dos dias
tudo isso se consome
pouco tempo depois de nascer

Aquilo que mais cedo ou mais tarde
acabamos por descobrir
é que apenas nos dão permissão
para marchar descalços
num chão repleto de vidros

As ilusões – os dias são feitos disso
e a penumbra – porquê que ninguém fala disso? Da distância
que nos separa do sonho inocente

(o Sr. Engenheiro acha que faz parte da sua função
limitar-nos a liberdade de raciocínio
e o Sr. Doutor também se sente na obrigação
de nos impor regras nas convicções
cada vez mais formatadas, como convém
a pretexto de mais um projecto
de relevada importância. Queria, antes de mais,
deixar o meu apreço a esses senhores
tão importados em ensinar-nos
um pouco de etiqueta comportamental)


Os nossos dias são cinzentos
mas vivemos e calamos
como que com medo
vá-se lá saber do quê
talvez de nos descobrirmos
no meio do esterco

Miguel Godinho
Aqui vos deixo o texto que resultou da apresentação do 1º livro de poesia do Pedro Afonso, "Ainda aqui este lugar".
Ainda aqui este lugar

É com grande orgulho que assisto à edição do primeiro livro de poesia deste grande amigo, de longa data, que é o Pedro Afonso. Este jovem e emergente poeta algarvio nasceu em Faro, em 1979, e é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas. É um dos membros fundadores do sulscrito, círculo literário do Algarve, faz parte da direcção editorial da revista literária Sulscrito e está representado na Antologia de Novos Poetas Algarvios – Do Solo ao Sul, editada pela ARCA (2006), na Antologia de Poesia Portuguesa Actual – Poema Poema, editada em Espanha (traduzido para castelhano) e na Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, editada pela Exodus, em 2008. Publica ainda regularmente no blogue A pedra, que mantém desde 2007.
Sou amigo do Pedro desde os onze / doze anos, desde o tempo em que começámos a questionar o mundo. Frequentámos a mesma escola preparatória e desde então tornámo-nos fortes amigos, atravessando juntos os momentos mais interessantes das nossas vidas – a adolescência, a juventude. Quase a partir do momento em que nos conhecemos, passámos a reunir-nos frequentemente para descobrir e partilhar a vida, as ilusões e as desilusões, os sucessos e os insucessos, as felicidades e as infelicidades de cada um. Apercebi-me desde logo que uma das características que melhor define a sua personalidade é a necessidade constante de se questionar, e, nesse sentido, de se enfrentar e/ou de se confrontar, quer para testar e perceber os seus limites e/ou limitações, quer para perceber o que há para além deles/as. Por isso mesmo, contava já que, de alguma forma, este livro que agora publica, seguisse essa mesma atitude.
“Ainda aqui este lugar” é um conjunto de poemas que se apresenta reunido numa obra de confrontação entre dois eus que existem em dois momentos temporais distintos, o eu-de-agora e o eu-de-ontem, mas que se confrontam no plano liso da percepção mental (onde não existe uma noção de ontem, de hoje ou de amanhã - conceitos normalmente entendidos de forma autónoma e separados entre si). Veja-se o excerto do poema da pág. 17 (“o mundo é um novelo na minha memória lisa”). O presente é pensado aqui em confronto com o passado, mas numa tábua lisa/plana de continuidade perceptiva – o agora, onde os conceitos de passado e presente se juntam num só, conforme referia atrás. Talvez por isso, o passado não tenha neste livro uma expressão rigorosa, um momento exacto, já que no livro não se verifica uma única referência a um momento específico do passado.
Assim sendo, este é, também, um livro de memória mas não de memórias, uma abordagem ao que foi e que não volta a ser da mesma forma (essa certeza transparece ao longo de toda a obra - há uma plena consciência disso mesmo), as imagens com que esse passado se faz representar hoje em dia e o efeito que elas produzem no entendimento da vida.
O método empregue para o objectivo proposto - o de se tentar compreender o presente olhando para o passado - revela-se extremamente semelhante ao método arqueológico. Veja-se o excerto do poema presente na pág. 47: “(…) assim procuro por debaixo das minhas / raízes onde cotão e memórias crescem / mas nada por lá está onde é possível ver / há coisas que caem e aparecem no sentir / onde os olhos e o faro não trabalham no saber”. Note-se aqui, conforme se referia atrás, essa clara ideia de reinvenção da memória. Em todo o caso, o acto de revisitação conduz-nos sempre a uma reinvenção, e logicamente a uma reinscrição – a chave para a compreensão do livro e a justificação para o próprio título do mesmo – “Ainda aqui este lugar”. Esse lugar que o título aponta não é um lugar físico, é antes um lugar abstracto: é o lugar da memória que continuará a ser continuamente e continuadamente visitado e a ser apreendido e concebido de forma diferente.
A finalidade deste livro é, quanto a mim, a tentativa de um posicionamento mais sólido no momento presente, a compreensão de quem se é hoje, através de um mergulho na memória (o confronto).
Justamente como referia atrás, e tal como numa escavação arqueológica, o método empregue aqui é o da demarcação do terreno/território afectivo e/ou emocional, através da aplicação de uma quadrícula bem definida nos elementos que compõem esse território afectivo, para, de seguida, se prosseguir para o estudo pormenorizado de cada um deles - as 4 estruturas / partes que dividem a obra:
A moradia – que, quanto a mim, traduz o emaranhado emocional onde agora nos movemos (veja-se o excerto do poema da pág. 25 “a mesa espera-te posta / a cada manhã lucente / e o que nela se acumula / são os restos depostos / de uma humanidade”);
O muro – traduzindo talvez a distância / o tempo (pág. 9 “já só a sombra daquele fogo / na distância que se adensa / ou talvez as mãos ainda sujas / que atravessam regressando / do fumo o toque resistente / inflamado na pele fresca da infância / talvez de pedras brancas erigido / um muro que te corte a memória / e te guie as águas rápidas / pela rua da qual o reflexo vigio”);
A casa ao fundo – talvez as primeiras emoções, aquilo que facilmente se dissipa da memória (pág.51 “(…) o rápido brilho secreto / de uma evaporação absoluta / aqui / resta a sombra / das coisas em queda”);
A imitação do jardim – o que se consegue recuperar através desse revisitar da memória / das memórias – (pág. 39 “o sol rasga por entre as árvores / um tigrado exótico no chão do jardim / pombos pavões patos passos de flor / e de dentro de um arbusto móvel / sai uma coisa qualquer viva de sangue / se ficam pegadas neste chão tão ido / é porque alguém lhes segue a sombra”).
Portanto, aquilo que o Pedro faz é “desentulhar” as sucessivas camadas de terra e de pó para, por fim, deixar á vista a estrutura que o define hoje em dia e que foi sendo engrandecida e/ou empobrecida ao longo do tempo: a “moradia” onde hoje habita. Veja-se o poema da pág.30: “É neste corredor cego / de atravessar os dias / que os pesadelos nos tocam / as pestanas vivos na escuridão / um sangue escorrido / que te acompanha o frio / pegadas do teu corpo sempre”.
Assim sendo, “ainda aqui este lugar” é uma declaração de que somos o resultado de sucessivas camadas sensitivas, de um amontoado de experiências acumuladas ao longo da vida. E sendo este um tema tão difícil de ser expresso verbalmente, este é, também por isso, um livro compacto, de uma densidade absoluta. Aludindo a uma das nossas referências adolescentes, diria mesmo que aquilo que o Pedro procura transmitir é que “o que éramos ainda somos, mas o que somos, não sabemos”.
Assim sendo, queria por último deixar uma palavra de apreço à editora “4 águas” que tornou possível este livro e que, da mesma forma, também hoje aqui se estreia na sua actividade editorial, ao Fernando Esteves Pinto e ao Victor Cardeira pela excelente iniciativa que teve no sentido de contribuir para a expressão dos autores algarvios e, mais uma vez dar os parabéns a este grande amigo que é o Pedro Afonso e desejar-lhe o maior sucesso na sua carreira literária que agora, com a edição deste livro, adquire um novo fôlego.

Miguel Godinho

quarta-feira, outubro 01, 2008

Os nossos dias (19)

Podes até sentir-te absoluto na imensa
frescura dos dias que se sucedem
mas a febre que te assola sempre que te
descobres por detrás dos processos
pousados na prateleira é suficiente
para te desaprumar o corpo e é precisamente
aí que acordas da dormência diária
para ver a luz ao fim do túnel

(Sem aviso prévio, a porta abre-se e não tens tempo para terminar o pensamento onde o poema se estava a desenhar)

Sim, senhor engenheiro, em que posso ajudá-lo?
Claro que sim, às quatro terei o procedimento revisto

Na impossibilidade de regresso ao poema
um cafezinho ao fundo das escada
- é só mais uma manhã onde te encontras
e depois te perdes

Miguel Godinho

segunda-feira, setembro 22, 2008

Os nossos dias (18)

Neste recinto engulo os gritos e enterro
as alucinações na surdez destas paredes
uma voz que aqui se derrame logo se perde
neste espaço que parece um poço
onde os sonhos morrem afogados à nascença

(outra vez o telefone)

Sim, muito boa tarde, faça o favor de dizer
(logo agora que estava prestes a encontrar-me)
Olá, Sr. Engenheiro, como está? É um prazer ouvi-lo de novo
claro que vou rever o seu dossier
deixarei esse assunto pronto ainda hoje

na aflição de ser alguém
uma profunda sensação de desespero
quem sou eu como é que aqui cheguei
no que é que me tornei
para quê esta hipocrisia?

(a duplicidade a devorar-me as ideias)

talvez um dia a demência me percorra
ou será que já lá estou?


Miguel Godinho

quinta-feira, setembro 18, 2008

Os nossos dias (17)

Definho solitário neste gabinete recôndito
enquanto o mundo me escorre
pela gordura das mãos

nestes dias de fastio
pouco mais me acompanha
para além da ilusão
no caminho da melancolia


(o telefone toca)


Sim senhor engenheiro, diga
(agora não - por favor - deixe-me definhar em paz)
claro que sim, senhor engenheiro
tratarei prontamente da pendência dos seus assuntos
(que lhe limpem o cuzinho é o que mais lhe dá prazer
agora não - por favor - deixe-me sangrar sozinho)


claro que sim senhor engenheiro
sempre que precisar


Miguel Godinho

domingo, setembro 14, 2008

Uma nova geração de poetas?
O poeta, o verdadeiro poeta, quanto a mim, deve desinteressar-se (no sentido de se sentir obrigado a retorquir só para produzir efeito entre pares) sobre aquilo “que realmente precisa de envelhecer”. A produção poética é filha do tempo de quem a produz. Um poeta que é novo (com menos de quarenta anos) não deve escrever no sentido de se fazer passar por velho, não deve procurar a afirmação através de uma maturidade fingida. O próprio conceito de maturidade é extremamente relativo - veja-se, por exemplo, o caso de Rimbaud. Quanto a mim, o poeta deve olhar, ver e bradar, reflectir, e dizer da forma que melhor o satisfaz e que lhe for mais sincera, da forma que se sentir impelido a fazê-lo. Um poeta é uma pessoa e uma pessoa é filha do seu próprio tempo. E a poesia só carece de autenticidade. O problema é que a visão portuguesa actual erigida pelos “senhores maturos e estabelecidos” se refere aos poetas emergentes como pessoas que, “surgindo primeiramente, em eventos colectivos cheios de gente, organizados por gente que já foi emergente, os emergentes seniores, e que só organizam eventos com emergentes, acham que os emergentes fazem poesia só para poderem dizer que também trabalham com gente”. Visão soberba. E, assim sendo, esses “senhores seniores da poesia” perderam o objectivo de romper barreiras, de deitar abaixo muros, no fundo, do propósito da poesia - que é o que fazem (geralmente) esses poetas emergentes. Quando, na apresentação de sábado (do livro do Pedro Afonso, o “Ainda aqui este lugar”), no Pátio das Letras, em Faro, me referi ao Pedro como um poeta emergente, estava fora desta discussão tola sobre a “nova poesia portuguesa”…
Quanto a mim, a nova poesia portuguesa, é aquela que se esta a fazer hoje em dia. E existe efectivamente uma nova geração de poetas portugueses que estão a tentar afirmar-se. O Pedro é um deles. O “novo”, enquanto “novidade”, só se poderá perceber quando passar a ser velho. É interessante verificar-se que o novo, quando se institui como tal, passa a ser velho. É hora desses “senhores maturos e estabelecidos” ou que pretendem fazer passar-se por tal (talvez o problema seja esse), permitirem e assumirem isso mesmo, por muito que custe a essa elite de “senhores poetas”. Permitam-me dizer-lhes, de uma forma muito carinhosa: “Fuck you”. A poesia também existe nesta brilhante fórmula da língua inglesa, basta usá-la no contexto certo. O Sr. Berardo sabe disso.

Miguel Godinho

sexta-feira, setembro 12, 2008

Os nossos dias (16)

No caminho que todos os dias faço
de casa para o trabalho
vejo-me sentado na esquina
a olhar a minha pressa
eu e só eu e mais ninguém a correr
(talvez nem seja eu)
a atender o telefone a vestir as calças
no emprego a fazer a barba
a escovar os dentes ainda
no banho a atender o telefone
é o Sr. Engenheiro
está tudo pronto Sr. Engenheiro
acho que está tudo pronto
são nove horas e eu ainda aqui
estou a caminho Sr. Engenheiro
só mais cinco minutos
ao cuidado do Sr. Engenheiro
com os melhores cumprimentos
o despacho tem parecer favorável
sim, eu já te telefono meu amor
agora não posso, estou ao telefone
sim eu passo no talho e compro as febras
vou-me deitar que amanhã às oito
outra vez, outra vez, outra vez

Miguel Godinho

sexta-feira, setembro 05, 2008

Sábado
13 de Setembro
21h30

Pátio de Letras

Faro

quarta-feira, setembro 03, 2008

Depois de um longo período introspectivo, eis que regresso com o meu tema preferido...

Os nossos dias (15)

Estou sim, muito bom dia senhor engenheiro,
faça o favor de dizer

(nada no espírito que valha a pena expressar
a caneta resvala-me da mão enquanto me perco
no infinito. O vazio do papel, um espelho
uma ausência enquanto atendo senhores engenheiros)

claro que sim, senhor engenheiro, sempre que o desejar

(uma carreira fingida que resplandece

numa sociedade aberrante
só para saldar as múltiplas despesas

de uma vida aparentemente burguesa)

adeus, muito boa tarde, senhor engenheiro
faça o favor de ligar sempre que quiser


Miguel Godinho

segunda-feira, julho 07, 2008

Tesão

Consegues saborear o suor da flor do loendro
numa tarde de verão?
É que, sabes, o que me apetecia mesmo
era perder-me no despudor do seu vermelho
e roçar-me até cair na incandescência de suas pétalas

Miguel Godinho

quinta-feira, julho 03, 2008

segunda-feira, junho 30, 2008

Uma gaveta desarrumada

Quando me olhas, sinto-me

uma gaveta desarrumada
é como se os teus olhos fossem
mãos à procura de mim
por entre todas as coisas
sem interesse que fui
colocando no meu interior

Miguel Godinho

Sonar Festival 2008

Estive lá

sexta-feira, junho 27, 2008

Os nossos dias (14)
[A pocilga]

Há madames que cheiram mal
apesar da sua extrema higiene
e senhores com bom ar
mas com nariz de bacorinho
há de tudo neste mar
de badalhocos por onde navego
só de olhar já tenho comichão

Às vezes penso que sou eu que
imagino porcos em todo o lado
mas ainda agora na mesa atrás
ouvi alguém grunhir bem alto
- um café, por favor, que o sol já queima
e a praia não espera

com tanto suíno a querer ser
atendido ao mesmo tempo
mais valia ter tentado outra pocilga

Miguel Godinho

quinta-feira, junho 26, 2008

Os nossos dias (13)
[Ontem transpus a noite]

Ontem transpus a noite com a mente repleta de sonhos
e na penumbra das sombras adormeci
nada nem ninguém capaz de me obstruir as intenções
nunca uma necessidade de salvação tão colossal
lambi um dedo cheio de cores e de vida
e de luz, como quem beija um gelado
e ali me demorei à espera dos vultos enquanto contemplava o infinito
rápidos movimentos sanguíneos num percurso determinado
e o presente-agora comandado pelo desejo e as ideias a vaguearem
por entre as ruas entrelaçadas numa dormência
o riso das pessoas chegou mesmo a coçar-me a cabeça
e seus cabelos adormentaram-me a viagem
vastas porções de transeuntes a esquecerem-se de mim
enquanto lhes gritava ao ouvido palavras de silêncio
na vida tudo passa, tudo morre (assim que nasce), tudo mesmo
as ideias são assim e a noite de ontem também foi
um minuto desde que a galguei com a mente repleta de sonhos
até que me esqueci de vez de mim ao percorrer todos os bailes
cheguei inclusive a olhar-me lá de cima
(a vertigem de nós próprios é uma sobremesa deliciosa)
toda a gente de braços no ar à espera deles mesmos
num carrossel de fantasias a descarrilar toneladas de impressões
(a dopamina subiu bastante o valor por litro
e nem nós nem ninguém nas ruas com um camião encostado em protesto
não há ninguém para defender esta esfera sectorial)
foi assim a minha noite, toda a noite e mais um pouco do outro dia
à espera que os lobos à solta uivassem mais alto que eu
foi assim a minha noite, a caminhar na solidão

Miguel Godinho

terça-feira, junho 24, 2008

Barcelona

Sempre que desta pequeníssima terra saio
uma tesoura de vida dilacera
a fina membrana exterior
enquanto a íris se abre desmesuradamente
na tua presença

a consciência de um caminho inútil por percorrer
ainda e só para me enxergar
na sombra e na intensidade desta ilusão

um raio de nostalgia
no vórtice das memórias de um tempo antigo
distrai-se na alucinação de um futuro melhor

mas

eis que tu aqui uma vez mais
me olhas nos olhos
enquanto carpido por não ser
honesto comigo mesmo

queria apenas dar o passo e voar
para essa terra onde me sinto vivo

Miguel Godinho


segunda-feira, junho 16, 2008

A ilha de Tavira

Uma sagres à beira mar
na ardência da tarde dormente.
Nesta praia as ostras habitam no meio
das pernas e os lagartos movimentam-se
por entre as dunas, em jornadas viris,
dançando nas ondas caniculares,
bamboleando-se por entre os fartos farfalhos
daqueles que pouco se importam
com preconceitos alheios

Aqui pouco mais há para fazer
para além de olharmos o trânsito
e de nos sentirmos longe
contemplando o azul do mar
de tocha na mão

Miguel Godinho

quarta-feira, junho 04, 2008

Os nossos dias (12)
[Nada mais para além da ausência]

Nada mais para além da ausência
vazio solene de histórias em branco
num silêncio outorgante da verdade

uma voz, uma só voz de mistério
na penumbra do imenso chão de pedra
a percorrer a apatia de uma vontade cansada

às vezes penso que me escapei de mim
fiquei preso às cordas de um passado ofegante
num grito de sangue a manchar a memória

rasgo sempre a luz e a sombra retorna
acabo sempre por cair no nada e em mim
nada mais para além da ausência

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 28, 2008

Os nossos dias (11)

Uma fatiota de segunda a sexta
e a mentira evidente na ordem dos dias
lembro-me disso quando me deito
de barriga para cima na secretária
e quando cumpro tarefas
em projectos essenciais

(a minuta já está completa, senhor engenheiro
falta apenas o senhor engenheiro assinar)

uma faca nas mãos do tempo
a assassinar a métrica dos dias
tenho ganho muitas rugas nos testículos
por mil euros ao fim do mês
acho que os neurónios já se esqueceram de respirar
pelo menos consigo pagar os créditos
e ser feliz ao fim de semana

Miguel Godinho

sábado, maio 24, 2008

[“O mais profundo é a pele”]

É esta a fina pele que me separa dos outros
uma membrana que transpira
o meu nome inscrito
na efemeridade das circunstâncias

queria fender as palavras e a vida
para senti-la de outra forma
e percorrer a calosidade escondida nessas pesquisas
nessas ideias que me renovam

Miguel Godinho

[Ao Pedro Afonso, a Deleuze e a Foucault]

sexta-feira, maio 23, 2008

O cheiro metálico das axilas

Queria que a madrugada não cessasse de se branquear
enquanto o cheiro a penumbra não me percorresse todos os poros

e que eu sorvesse a nébula matinal de um só turno
consumindo a vida sem consequências

com esse pretexto se acenderiam os olhos para sempre
e se permitiria o olhar sem perturbações

um som misterioso continua a palmilhar a dormência nasal
enquanto me esqueço que existo

no cheiro metálico das axilas a verdade constrói-se
no momento em que se aprende a contemplar a mentira

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 21, 2008

O porquê das conversas (2)

Se eu tivesse certezas sobre quem sou

não haveria necessidade na escrita deste novo texto
não precisaria de me vasculhar por entre mais palavras

Se as convicções que me alinham fossem óbvias ao olhar
não arriscaria este texto vezes sem conta - já me lembrei
o porquê desta conversa

Miguel Godinho

terça-feira, maio 20, 2008

O porquê das conversas

Se eu tivesse certezas sobre quem sou

não haveria necessidade na escrita deste texto
não precisaria de me vasculhar por entre as palavras

Se as convicções que me alinham fossem óbvias ao olhar
não riscaria este texto vezes sem conta - já nem sei bem
o porquê desta conversa

Miguel Godinho

segunda-feira, maio 19, 2008

Os sonhos

Entorpeceste-te com a vida
e lambeste-me a mão, enfraquecido

uma descarga voltaica resolveria tudo - dizias
antes da pressão sanguínea se meter a mil
carregarias o cérebro de chumbo uma vez mais
olhando os dias por um funil

engoliste um comboio desgovernado
e deixaste que isso te revirasse o estômago
um vómito de realidade e ficarias melhor
comerias os dias com uma colher

sempre te perdeste na verdade
antes de acordares para um mundo pior
tudo aqui se vendia barato
e até os sonhos eram do melhor

Miguel Godinho

quinta-feira, maio 15, 2008

Os nossos dias (10)

Podíamos ser mais nós se o quiséssemos
seria fácil caminhar ordeiramente pelo devir
se nos importássemos realmente com isso,
se os procedimentos que nos tornam sociáveis
não fossem apenas sujeições

Se caminhar descalço na vida não implicasse
um corte num membro qualquer, então despia-me dos pés à cabeça
como costumo fazer sempre que me deito
a imaginar um novo mundo

pode ser que amanhã acorde na cama sem cabeça
e não consiga ir trabalhar

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 14, 2008

Os nossos dias (9)

Acabo sempre consumido
pelo grave odor a sexo entranhado na mente
enquanto escancaro a portinhola
para que te sirvas à vontade

uma aflição, a tua boca

após esse deboche nocturnal de fruta e chocolate amargo
caio bruscamente do azul do céu para o sofá
depois de te analisar por dentro

empurra-me para o lado como costumas fazer
acende um cigarro abre mais uma cerveja e liga a TV
lá fora chove como Deus a manda e eu aqui prostrado sem cuecas
à espera do fim de semana que nunca mais chega

queria apenas curar a ressaca dos dias
deitado para sempre contigo a fazê-lo
às vezes parece que alguém vai trabalhar todos os dias por mim
pois eu acho que nunca saí deste sofá

Miguel Godinho

terça-feira, maio 13, 2008

Mop Mop - Exotic nuJazz Combo

Uma proposta extremamente interessante...

sábado, maio 10, 2008

O caminho

Mesmo que me esqueça do teu nome
as raízes que me impedem de cair no asfalto
tentarão sempre perfurar o alcatrão dos dias
dançarei sempre ao som do batuque
pisando de pé descalço o caminho para a praia
ainda que a rota não esteja bem definida
ainda que o sol nem sempre ilumine o caminho

Miguel Godinho

sexta-feira, maio 09, 2008

Nas chuvas de Maio

Nas chuvas de maio
ainda o Inverno se impõe e
no roxo dos horizontes distantes
Faro a surgir
por detrás da nuvens, de frente para o mar

é sempre às terças, nas visitas-relâmpago
que a minha mãe me lembra da distância.
A minha irmã a abrir-me a porta da mesma forma
que quando lhe pedia asilo
(é sempre assim, sempre foi assim, não poderia agora não ser assim)
e a fechá-la duas horas depois
a perguntar-me quando voltas

nem os amigos tenho tempo para beijar
porque amanhã toca de novo o despertador
à hora do costume, antes de o sono me acordar


podia tão bem cagar para tudo isto
e render-me à Ria, como tu
dizes-me que chega bem para degustar a vida
tanto mais que tudo é mais fácil
de frente para o mar

Miguel Godinho

[ao João Bentes em particular, e ao pessoal de Faro, no geral]
Lê-se nos olhos (2)

Lê-se nos olhos senhora doutora
não é necessário dizer que não

uma cárie por detrás desse sorriso abrilhantado
num semblante estilhaçado de pertinácias
por detrás dessa estatura tão finamente arquitectada

sempre que a senhora se desenha perante os outros
engana-se a si muito antes de nos enganar
preenchendo-se de sonhos ridículos
num modelo de ilusões

caso não tenha entrevisto
a senhora está desprotegida, diante de todos,
e nem tão pouco se apercebe, minha donzela,

senhora dona imaculada

cada vez mais me toca a castidade
do seu discurso badalhoco

lê-se nos olhos, senhora doutora
não é necessário dizer que não

Miguel Godinho

quinta-feira, maio 01, 2008

Os nossos dias (8)
[Uma rodinha para inalar o futuro]

Nem sequer já sinto outro tempo
que não este
a percorrer-me a aorta
num rio de sensações seculares
a vergar-me a memória

Ò tempo volta para trás

Um coelho a correr por dentro de nós
e nós à caça dele como quem separa batatas
enquanto a pedra nos percorre a cabeça
(e que grande pedra)

deixemo-la pender (a cabeça)
como quem repousa
por debaixo da alfarrobeira
e resguardá-la por debaixo do tronco,
por debaixo da espinha vertebral
(e que grande pedra)
(e que grande espinha)

Por debaixo da pedra sai um lagarto
(e que grande lagarto)

Tomemos uma trip de TNT
e lavemo-nos na chuva que nos percorre a face
fechemos os olhos outra vez e olhemos em frente
Como se não houvesse amanhã

Uma rodinha para inalar o futuro
como quem dança uma modinha
e abraçar-nos a olhar o destino
com lágrimas de crocodilo

montemos o motociclo do tempo sem capacete
e gritemos:
NHAU

Miguel Godinho

terça-feira, abril 22, 2008

Lê-se nos olhos

Lê-se nos olhos, senhora doutora
não é necessário dizer que não

uma pancadinha nas costas e
uma lambidela no senhor doutor
(por debaixo da secretária talvez resulte melhor)
no coiro de seus sapatos italianos
assim se ascende mais um grau
nessa carreira promissora

uma cartada jogada cautelosamente
um arranjinho criteriosamente pensado
afinal, nós prosperamos é por intermédio das habilidades
cada um desenrasca-se como pode

resignar-se, a senhora, ao pódio dos derrotados
e viver na sombra de algum senhor sem brilho?
Deus a livre de tamanho infortúnio

Miguel Godinho

sexta-feira, abril 18, 2008

Os nossos dias (7)
[A febre]

Temos febre, muita febre
sempre que o telemóvel toca na cabeceira
às oito menos um quarto

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 16, 2008

Os nossos dias (6)
[A novela]

Dorme. Esquece-te de ti
envolve-te na ruína e enquadra-te na apatia
enterra-te bem fundo antes que te lembres de onde vens

porque os dias não são todos iguais
são quase todos iguais mas não são bem
tanta confusão na cabeça provocada pelas luzes, pelo movimento
e pelos ambientes violentos em que circulas
tantos doutores a quererem ser doutores
à tua volta é só superioridades

dorme. Esquece-te de ti
as manobras por um mundo melhor
são tão inúteis quanto esse teu desejo

porque dos dias já só decorrem fracassos
sucedem-se as horas e nada de importante acontece
encosta-te nas ilusões e adormece
tanto crápula de fato e gravata
à tua volta são só enganos
a vida não é só um posto ou um belo ordenado mas
é sempre um bom tema de conversa entre colegas e ao jantar

dorme. Esquece-te de ti
envolve-te nesse manto, esquece-te do dia
liga a televisão e vê a novela

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 14, 2008

As primeiras memórias [2]

Lembro-me de muito pouco da casa de S. Luís. Para além da moto, da cama, da pequena horta do meu pai (e do seu bigode a roçar-me a cara), da televisão da vizinha Gertrudes, nada mais. É interessante o facto de não possuir memória alguma da minha mãe ou sequer da minha irmã, por esta altura. Nada. Duas pessoas que são e sempre foram absolutamente fundamentais para mim e nem uma única recordação.
A casa onde vivíamos localizava-se em torno de um grande quintal ao qual se acedia por um grande portão de ferro que dava para a Estrada de S. Luís. Era necessário abri-lo e percorrer um grande corredor, depois uma imensa escadaria e por fim percorrer o quintal até bem lá ao fundo. A mim parecia-me tudo grande, o portão, as escadas, o quintal. Hoje sei que afinal era eu que era pequeno. Afinal, o portão não passava de uma simples porta.
Nesse quintal estavam localizadas várias casas, como que escondidas do reboliço urbano que, diga-se de passagem não tinha muito de urbano, por aqueles tempos em que lá vivíamos. A nascente daquela zona da cidade existia apenas o bairro da Penha, bairro esse que não teria mais de duas dezenas de casas térreas e uns poucos prédios de dois ou três andares derramados por entre algumas estradas, a maioria de areia. A desordem urbanística só muito mais tarde se viria a tornar evidente.
A rotunda do Hospital ainda não existia nem tão pouco a Avenida Calouste Gulbenkian. Lembro-me perfeitamente da sua construção e do espectacular simulacro que os bombeiros lá fizeram, penso que por alturas da sua inauguração. Acho que foi esta a última memória registada, associada àquela casa. A partir daí houve um vazio e nem me lembro sequer da mudança, que sem dúvida deve ter sido constrangedora. É estranho mas, revisitando estes tempos, dou por mim e encontro-me já a viver num sítio cuja casa-de-banho não passava de um buraco no chão e de uma espécie de alguidar embutido na parede. Este seria o local onde três pessoas viriam a ter de fazer a sua parca higiene diária, durante os próximos seis ou sete longos anos.

Miguel Godinho
Os nossos dias (5)

Na falta de uma utopia
um grande nada enquanto engordo
refastelado na doença do corpo

a janela tem boa vista e o sofá
dá para deitar. Posso sempre
puxar a mesinha de apoio
e descalçar-me de mim

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 09, 2008

As primeiras memórias

Quando nos mudámos para S. Pedro, vínhamos de um despejo repentino da casa onde habitávamos, em S. Luís. Nessa altura tu eras muito nova e tinhas saído de casa muito à pressa porque querias ir viver com o Manel. Devias ter uns dezassete ou dezoito anos mas já sabias muito da vida. Nunca percebi realmente se gostavas mesmo do Manel ou se o que querias mesmo era alguém que te ajudasse a sair daquele ambiente de ruína. Nunca partilharia contigo a minha opinião sobre esse assunto, nem agora, nem nunca.
As primeiras memórias que tenho de ti ainda dizem respeito a acontecimentos passados naquela casa de S. Luís. Eu devia ter provavelmente uns quatro anos. Recordo-me perfeitamente de uma moto que me ofereceste num período em que estive doente. Lembro-me de percorrer os lençóis nela, de viajar incessantemente o dia inteiro montado no seu banco. A moto cabia-me na palma da mão mas acho que foi o veículo mais interessante que tive até hoje. Gostava de poder pegar hoje no meu carro e regressar àqueles lençóis.
Nesse tempo ainda não tínhamos televisão. A única pessoa que possuía um aparelho desses era a vizinha Gertrudes que vivia na outra ponta do quintal e, como era normal naqueles tempos, era para lá que toda a gente se mudava aos sábados para ver já não me recordo que programa.
O meu pai tinha no quintal uma pequena horta cercada onde plantava couves, hortaliças e outros vegetais que de momento não me recordo. Ao fundo do quintal construiu um pombal improvisado com umas madeiras que frequentemente recolhia e era lá que criava rolas e pombos que alimentava com bocados de pão duro. Recentemente fui descobrir fotos nossas desses tempos, do meu pai comigo ao colo, e o certo é que parecíamos os dois muito felizes.
O meu pai tinha um bigode muito grande e forte. Outra das minhas primeiras memórias têm que ver com o seu bigode a rasgar-me a pele quando me beijava e do misto de dor e prazer que sentia. Quase sempre fazia isso depois de estar alcoolizado. Eu sentia claramente o forte odor a bebida e hoje percebo que foi esse vício que condicionou toda uma série de sonhos (incluindo os meus) e que ditou o futuro pouco interessante de algumas pessoas.
Miguel Godinho

terça-feira, abril 08, 2008

Prelúdio
Ensinaste-me o caminho para lá chegar e agora sei percorrê-lo, até de olhos fechados. Provaste-me subtilmente que não há outra forma para se caminhar senão com os pés bem assentes, talvez por isso não seja hoje capaz de criar ilusões para não consentir desilusões. Não era teu, não eras minha. Mãe ou irmã - que interessava isso?
Percebi contigo que um grão de areia poderia explicar o deserto pois, se bem te lembras, também me demonstraste que uma simples coisa podia explicar uma grande coisa. As partes são no fundo a imagem do todo, eram essas as tuas palavras. Lembro-me perfeitamente do início - de quando me mudei para tua casa porque a vida em casa da mãe era fodida - e observo agora a degradação dos dias de hoje. Talvez tenha sido sempre assim. Possivelmente neste caso a degradação não foi crescente, talvez tenha existido sempre o mesmo nível de degradação. Mas a degradação sempre existiu na nossa família e com ela sempre convivemos. Digo isto porque o desenrolar da vida mostrou-me que tudo se degrada (ou as tuas lições é que me fizeram ver o mundo dessa forma), tudo se constrói para ruir. Bastava olhar para a maçã que deixavas no quintal, em cima do vaso sem flor e que pedias para ninguém tocar. O bolor inundava a fruta. Nunca percebi muito bem qual o objectivo mas parece que gostavas de mostrar a ti própria e talvez mostrar-me a mim também que tudo caminha sempre para a sua degradação. Um simples acto que explicava a Vida. Duas das tuas maiores lições: o todo explicado claramente pelas partes e a degradação progressiva das coisas.

[1º texto de um extenso conjunto]
Miguel Godinho

domingo, abril 06, 2008

A Verdade

A Verdade é perfeita demais para poder ser exposta no papel

Miguel Godinho

sexta-feira, abril 04, 2008

A constatação

Sei que pareço um ladrão (de assuntos)
mas há tantos que eu conheço
que parecendo aquilo que não são
são aquilo que eu pareço

terça-feira, abril 01, 2008

A memória

Nesta sala quieta o silêncio dispersa-se rapidamente. É como se o mar invadisse o espaço sem uma onda de aviso. Nas vidraças rectangulares deste prédio pouco habitado uma luz fugidia irrompe serenamente na penumbra. São muitas as vezes em que os gritos desse silêncio revelam o teu nome. Nenhum som me perturba mais do que a forma do teu nome desenhado nas ondas desse silêncio. Não era suposto permaneceres aqui, num local que nada tem que ver contigo. Ou serei eu que não pertenço aqui, neste local onde tu já não fazes sentido? A memória tem destas coisas. Faz-nos questionar a vida que levamos e traz-nos à lembrança as pessoas que por vezes nada têm que ver com os momentos em que as evocamos. Talvez sirva apenas para nos fazer ver que nós afinal é que não devíamos ali estar.

(ao escrever memória, enganei-me e escrevi mnemória – até tem a sua piada, o termo – prometo que voltarei a este engano)

Miguel Godinho

O tempo

segunda-feira, março 31, 2008


Na foto - Dith Pran [fotojornalista]
(n. 27 Setembro, 1942 – m. 30 Março, 2008)

quarta-feira, março 26, 2008

O som que a boca faz

Ttcheeuu
o som que a boca faz
um vento que provém do estômago
como se a vida nos pontapeasse

na vez de muitas palavras
um sopro de exaltação
na expressão do deslumbramento
do cansaço ou qualquer coisa

Miguel Godinho
Antinomias do Eu

Poderias explicar-me
aquilo em que acreditas
isso não faria sentido para mim

poderias provar-me
o que para ti é a Verdade
eu não acreditaria

poderias dar-me
a conhecer o teu mundo
eu não quereria fazer parte dele

poderias mostrar-me
que me consegues interpretar
eu não confirmaria

poderias esconder-te
para sempre de mim
só para não teres de te encarar

Miguel Godinho

terça-feira, março 25, 2008

Os monstros

Os monstros também usam máscaras

e tu deixaste cair as palavras
para dentro de ti como num poema
que escreveste uma vez
tiveste medo de te reconhecer nessas palavras

são só palavras

o que conta não são as palavras
contam sim os monstros
também eles usam máscaras

por isso não te escondas
não uses máscaras não andes à toa
revela-te percorre-te penetra-te

mas não deixes marcas
cuidado esconde-te observa-te redige-te
não hesites aproxima-te saboreia experimenta
mas não deixes marcas deixa pistas
não te importes
os monstros também usam máscaras

Miguel Godinho

segunda-feira, março 24, 2008

Das tendências

Carrego o peso dos dias
olhando esta oliveira cujos ramos viajam
ao sabor do vento e sinto
que não pertenço a sítio algum

descubro constantemente impressas em mim
ora a frustração da folha em branco
ora a mediocridade do texto escrito e
não consigo caminhar sem que a dúvida me invada

viajo incessantemente entre esses dois portos
e na tormenta da invenção a vontade
de exprimir unicamente um grande nada
tornando evidente a perfeição do vazio

na folha em branco um sossego
a apoderar-se de mim sempre que abro o caderno
e dele não quero sair

a poesia também pode ser só esse vazio
um espaço desabitado de tudo
onde nada fica por dizer

Miguel Godinho

segunda-feira, março 17, 2008

A propósito da Páscoa
Foto de Carl de keyser
Eis que finalmente

Há um momento em que percebemos que somos
a síntese de tudo o que nos aconteceu. Um momento
onde reconhecemos que o presente
não poderia ser de outra forma.
E então percebemos
o filme das nossas vidas
ainda que os sucessivos momentos
que se instalaram na nossa história se tivessem sucedido
sem que lhes prestássemos a devida atenção.
É como nos filmes que nos mostram
retalhos
de uma qualquer realidade onde
sucessivos acontecimentos se
acumulam
nem sempre de forma ordenada
até que o puzzle de repente se constitui,
até que a luz desliza dos céus,
até que nos conseguimos olhar nos olhos
e dizer
este sou eu, esta é a minha vida, aqui me encontro,
eis que finalmente

Miguel Godinho

sábado, março 15, 2008


Podia bem ser qualquer coisa
os olhos dele decidiriam
Uma nuvem, o horizonte
e o sol escondido podiam enquadrar tão bem
uma alvorada ou um crepúsculo.
A poesia do momento tornava
tudo tão intenso e, ao mesmo tempo, tão ambíguo…
E enquanto decidia sobre aquele momento tão breve
pensava apenas em acabar com a vida,
como se a harmonia envolvente fosse um terror
como se nada daquilo interessasse para alguma coisa

Miguel Godinho

sexta-feira, março 14, 2008

Imagens mentais

No seguimento do que afirmou hoje Fernando Belo no Público e do que Ana Gerschenfeld expôs há uns dias no mesmo diário, fica bem claro aos meus olhos o romantismo existente nas ridicularidades que se formam em torno da necessidade constante em anunciar novos progressos científicos. Um bom exemplo é o caso das tão faladas “imagens mentais” e das investigações que se desenvolvem actualmente em torno do tema.
Procura demonstrar-se nos dias que correm que, “utilizando apenas a análise dos padrões de actividade cerebral gerados pelo visionamento de imagens naturais”, será possível no futuro “identificar, com grande precisão, a(s) imagem(ns) que o cérebro humano está a ver”. Pretende-se com isto vir a tornar possível a constituição de um modelo matemático que permita identificar os padrões dos registos mentais (as imagens) formados aquando do visionamento de uma qualquer representação gráfica (uma fotografia, por ex.).
Nunca será, no entanto, possível, uma “descodificação” da memória ou da imaginação como se pretende fazer crer. Uma coisa são as representações que o cérebro forma a partir de uma qualquer imagem, outra coisa é o discurso que é produzido (e que é imperceptível do ponto de vista da representação gráfica - porque com múltiplas interpretações) em torno dessa mesma imagem. De qualquer forma, cada discurso está dependente da aprendizagem individual e isso, naturalmente, varia de indivíduo para indivíduo. Não se vai conseguir no futuro traduzir um registo cerebral das ideias, dos juízos, das concepções mentais, do discurso formado (ou por formar) em torno de algo, precisamente porque isso depende do percurso biográfico de cada um, embora isso pudesse parecer uma óptima ideia para alguns… O primeiro estímulo cerebral (a imagem) perante uma tela de Baskiat pode ser a mesma, quer para mim, quer para a minha mãe (que percebe tanto de arte contemporânea como o Padre Alberto – talvez um misto de excitação e desconforto) mas de certeza que o discurso produzido, a interpretação, a transformação operada pela apreensão ajudada pela linguagem e pelo discurso inquisitivo não serão com certeza os mesmos…

Miguel Godinho

quarta-feira, março 12, 2008

Fazia-lhe espécie [Ainda em relação a Punta Umbria...]

Fazia-lhe espécie o facto de quererem abater uma série de palavras ao poema, com o pretexto de que assim ele viveria melhor. Como se o poema não só fizesse sentido para ele daquela forma, como se o que aquelas palavras quisessem dizer não completassem o que ele próprio queria dizer, como se se pudesse amputar o poema alegando que, dessa forma, ele caminharia melhor...

Miguel Godinho
[Em jeito de provocação ao Fernando Esteves Pinto e ao Manuel Domingos]

segunda-feira, março 10, 2008

Por várias vezes, em várias ocasiões, se abordou este assunto, em Punta Umbria, no Encontro de Escritores Palabra Ibérica 2008. W. H. Auden explicou em tempos a sua visão sobre a questão:

Aos olhos dos outros, um homem é poeta
se escreveu um bom poema.
A seus próprios, só é poeta no momento em que
faz a última revisão de um novo poema.
Um momento antes, era apenas um poeta em potencial,
um momento depois, é um homem
que parou de escrever poesia, talvez para sempre.

W. H. Auden

quarta-feira, março 05, 2008

Os nossos dias (4)

Dêem-nos circos e paradas que nós
inventamos um novo mundo e sentimo-lo
da maneira que quereis

este é o fim das consciências
aguardamos novas ordens
já só funcionamos com instruções sapientes

dêem-nos as coordenadas
indiquem-nos um caminho
providenciem roteiros organizados e objectivos

as estradas enlameadas não serão obstáculos
seremos felizes no fim do horizonte
bem para lá de nós próprios

Miguel Godinho

segunda-feira, março 03, 2008

Os nossos dias (3)

pouco interessa já aos meus olhos
quem dera um silêncio eterno irrompesse
para não ter de me aperceber dos óbitos diários
para não ter de ouvir a galinha a cantar amanhã
outra vez

e no entanto continuo a usar
uma pistola apontada às esperas
enquanto me esqueço de hoje no sofá
alternando canais na tv

Miguel Godinho
"Arrear o calhau"

Desde muito pequenos que nós somos ensinados a defecar/obrar/fazer cocó na sanita porque parece mal fazermos este serviço nas calças ou no meio da sala de jantar em pleno baptizado do irmão mais novo, como se isso fosse má educação.
Vou passar a explicar o que é o cocó: O cocó é normalmente chamado (numa linguagem mais rude) de "cagalhão". Pois é, quis Deus que este cagalhão cheirasse mal e fosse castanho para não o podermos deixar em qualquer sítio. Um olhar mais pormenorizado sobre este esterco humano revela-nos dados muito interessantes, um dos quais é de que esta substância é compacta, logo, pesada.

Estando um indivíduo com o cólen cheio de cocó, surge por vezes uma sensação de peso. Pesadas são também as pedras e calhaus que encontramos por aí. Foi deste fenómeno intestinal que nasceu o "arrear o calhau". Com esta expressão suavizamos a expressão "cagar", que é muito feia, pois a sua utilização demonstra falta de educação, segundo pessoas ditas educadas.

Outra possível, e mais correcta, explicação da origem desta expressão poderá ser que devido facto de nem sempre ter existido papel higiénico era frequente procurar-se uma pedra lisa (calhau) para que após a defecação se pudesse limpar o real traseiro. Após o acto de limpeza (evidentemente pouco eficiente) atirava-se a pedra para longe. Daí vem o termo Arrear (atirar) o calhau. (Esta versão foi nos cedida pelo Daniel Lopes)

Exemplo de utilização:
Filomeno: "Onde vais? Estás-te a esquivar do trabalho?"
Rosário: "Não. Vou só arrear o calhau e já venho."

Informações retiradas de um blogue muito interessante.

sábado, março 01, 2008

Podia bem ser um sinal de trânsito

Miguel Godinho

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Podia bem ser a capa de um livro de culinária

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Os nossos dias [2]

Às vezes concluimos
que já chega de brincar com ela
preparamo-nos para vestir as calças e guardá-la
mas há sempre algo que nos distrai

damos por nós e temo-la nas mãos
outra vez

Miguel Godinho

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Os nossos dias

A dormência no sofá deitada connosco
e o desinteresse pela sucessão dos dias
pensamos nisso enquanto coçamos os colhões
a sequência temporal é pouco importante
hoje até podia bem ser daqui a um mês

a suspensão cerebral uma benesse
de que importa o abismo ou o céu ou o paraíso
ou a morte ou as coisas ou o que pensam de nós
queríamos apenas um hipnotismo para matar a consciência
das obrigações físicas e morais

e olhar sem perceber e só sentir sentir sentir
e atropelar esses sentires com mais sentires
sem nos apercebermos de nós

Miguel Godinho

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

O compartimento

Na neblina da noite denuncias sempre
o compartimento construído na morada da memória
enquanto deixas atascar os olhos na lembrança
de uma adolescência pouco preenchida

os meus olhos idolatram essas paredes ígneas
que também eu edifiquei para me apartar

uma vez sonhei comigo próprio
cercado de pessoas mas sem me verem
e ao abrir os olhos continuava a sonhar
que acordava do sonho e continuava a sonhar

Miguel Godinho

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Um pássaro em chamas

afundar-me-ei de novo
neste mar de alcatrão
num voo abrupto
de um pássaro em chamas

podia permanecer para sempre
nesse limbo de desgraça
atascado até aos ombros
e afogar-me uma e outra vez

Miguel Godinho

sábado, fevereiro 16, 2008

O grito

É este o grito na demência da tarde
a vida num punhal cravado na folha inocente
descrevendo emoções repletas de sonhos perdidos

o silêncio por debaixo das frases atravessadas
de memórias inundadas de esterco
e o olhar perdido ao canto da sala
desenhando a inércia

faz tanto tempo que não consigo
sentir a magia das coisas simples
às vezes parece que alguém que não eu
instituiu uma nova verdade para o olhar
separando-me do que realmente importa

Miguel Godinho

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

"The path of the righteous man is beset on all sides by the inequities of the selfish and the tyranny of evil men. Blessed is he who, in the name of charity and good will, shepherds the weak through the valley of darkness. For he is truly his brother's keeper and the finder of lost children. And I will strike down upon thee with great vengeance and furious anger those who attempt to poison and destroy my brothers. And you will know my name is the Lord when I lay my vengeance upon thee."

Ezequiel 25:17

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Tropa de Elite

Um retrato da vida nas favelas.
A estrear em breve em Portugal.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

O vazio

Alienação
desinteresse
indiferença
apatia
torpor
marasmo
inércia
preguiça

tantas palavras para explicar o vazio

Miguel Godinho
Um extenso mar de crude

Entre o real e o que nos oferecem
o intervalo que nos separa de nós mesmos
uma densa camada de lama
besuntada no cérebro

nos dias que correm somos gaivotas
atascadas num extenso mar de crude

Miguel Godinho

domingo, fevereiro 10, 2008

Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos.

in O Anjo literário de Eduardo Alfon [o livro será publicado pela Editora Cavalo de Ferro e será lançado no evento Correntes d’Escritas – Póvoa de Varzim, de 13 a 16 de Fevereiro).
Uma pesquisa sobre o “momento da primeira inspiração literária” e sobre porque é que alguém começa a escrever. Uma proposta que, a julgar pelo excerto que li no Público de hoje, me pareceu muito interessante.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

O fruto proibido

Uma ansiedade incontrolável
enquanto não são horas de te aspergir novamente
os lábios enxutos e deixar depois a saliva
escorrer pelo pescoço como se fosse
uma ribeira de luxúria em que me afogo

Imagino-te já desprovida de roupagens
descalça numa concha de um cetim índigo
com os cabelos soltos nos ombros nus
numa provocação premeditada

Já sonho acordado contigo meu amor
prometo-te que esta noite não terá fim
deixemos que os nossos corpos sejam prensados um contra o outro
pela tensão dos céus
e que os remorsos nos incomodem só pela manhã
(quando acordarmos)

Miguel Godinho

domingo, fevereiro 03, 2008

Das diferenças

Na inscrição do tempo ela revelava-se sempre
alguém que não sentia o instante
de uma forma tão violenta quanto eu

depois da escrita do momento
o questionar da conjectura
num ensaio interpretativo

um vago exercício de justificação
irrompia então no seu sossego
e na candura do meu olhar submisso
um vasto corpo de sensações devolvia-nos
a ambivalência da situação

sabes, consigo experimentar a intensidade
de uma maneira muito diferente da tua
(conseguia ler-lhe isso nos olhos)

era como se quisesse mostrar-me
de uma forma fácil de entender
que eu não era aquele

E no entanto, se soubesse dela morta
ainda hoje lhe oferecia
a minha cova

Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 30, 2008

O jazz

Sopros de um vento abstracto
num crescendo inconstante de luzes e sombras
e sentir o vazio a encher-se de harmonias
numa floresta povoada de delírios
– é como contar uma história a alguém
que já a viveu na pele e agora se descobre de novo
e dizê-la e senti-la de uma forma tão natural
como o jazz

Miguel Godinho

Bom, muito bom [2]

Root 70

para quê palavras?

Bom, muito bom [1]

A minha mais recente descoberta (e aquisição) musical

segunda-feira, janeiro 28, 2008

O Martim Moniz

Em que pensam estas criaturas anónimas
dormentes imunes à vida
enquanto transferem beatas sonhadoras apagadas
de uma mão nervosa para outra
numa alienação prostituída?

Uma voz surda penetra constantemente
as ruas num canto solene ao deus dará
enquanto cadáveres deambulam
por entre ilusões extintas de uma vida melhor

A dor insiste constantemente em despir-se
nas calçadas encardidas
e nós comodamente sentados a passar de carro
e a desviar o olhar da pureza da cena
ninguém gosta de ver uma velha a caminhar nua pelas ruas
nem que queiramos ver nisso uma encenação teatral

O que esperam estas criaturas da vida?
o mundo esqueceu-se delas
como elas se esqueceram do mundo

Ao fundo da rua um homem foge dele mesmo
envolto numa nuvem branca de fumo esbracejando
a ressaca que teima em desgrenhar-lhe os longos cabelos sujos de carcoma
os suores frios são lâminas que dilaceram
e eu quase que as sinto a cortar-lhes a pele

Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Ó nosso Algarve do céu azuli
[versão actualizada de um texto antigo]

em homenagem a Jean Pierre Fonseca dos Santos

Antigamente, eram muitas as bocas com fome
mas ainda assim se decoravam casas e carroças e barcos
e o que fosse sem que o aparato precisasse de um Mercedes
estacionado a uma porta de madeira podre, sem que o prato
do almoço se esvaziasse de conteúdo só para que o vizinho soubesse que

- aqui o papá tem um 320 enquanto ele, um simples 220!
Eram tempos em que não faltavam banhos de luz, de um sol
tão ofuscante que queimou passados e fez arder
memórias de dias duros, de miséria, de sangue.
Hoje em dia, já não há barcos nem campos de figueiras
nem alfarrobas nem burros cansados de dorso marreco.
Agora, já só se conhecem marrecos cansados e sujeitos burros.
O algarvio cantante ficou dormente e comprou um barco
que não pesca, nem apanha choco à luz da candeia
nem sai da doca que agora é marina. Mas o barco lá está
à espera da penhora para poder navegar para outras bandas.

Esta é agora a terra do algarvio de segunda geração
e primeiríssimo nível, que partiu para França há vinte anos
e que vem constantemente de vacances com uma ideia para a retraite:
investir numa pastelaria, lá na aldeia, é isso que faz falta.
Traz sempre um casaquinho novo de cabedal,
uma gravatinha verde e bolinhas amarelas
e muitas calças de fato de treino para combinar com a malhinha.
Tudo novo – para que se saiba.
Saltou do anonimato por causa da casinha branca lá no monte
que o avô deixou (à custa do contrabando trazido do lado de lá da fronteira)
e pintada agora de rosinha-choque para dar no olho
Dá que falar na vizinhança pela ligeira transformação da moradia
acrescentou-lhe quatro quartos, duas suites, uma piscininha. E as divisões
têm boas áreas! Os compadres não se cansam:- É um bom vizinho, não faz barulho,

só cá vem uma semana por ano!

Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 21, 2008

A louça suja

Massajas a louça suja
como quem mexe num bordão para o excitar
deixando-me firme só de olhar
queres nos lábios ou lá em baixo, meu tesouro?
era aqui mesmo enquanto esfregas
os restos dos pratos oleados do peixe frito
nas mãos ocupadas de coisas insignificantes
sepulta-o enquanto a água quente cai
e grita por mais
eu estou cá é para te auxiliar

Miguel Godinho

domingo, janeiro 20, 2008

Four Tet-Hands

Da complexidade

O entendimento escarnece de nós constantemente
sempre que a vida ganha um sentido diferente
e a nomeação da matéria volátil incendeia-se
junto com a efemeridade do seu novo significado
As palavras
tudo o que elas dizem é insuficiente
para descrever as CORES os SONS o SILÊNCIO
Escrevemos a vida de uma maneira e logo depois
obrigamo-nos a queimar o papel
na impossibilidade de um sentir absoluto
As mãos jamais agarrarão a complexidade
resplandeceremos sempre com o insondável
ainda que uma ingénua tendência pretenda sempre
agarrar o todo ainda que a certeza da intangibilidade
oriente essa busca incessante pelo inexprimível

Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 16, 2008

O disparo

Um tiro certeiro às palavras
numa visão que as sangra no papel

Na fúria de dizer
primeiro o sentir, depois o disparo
e a energia da bala propagada
na folha moribunda

(escrevo para matar um sentir)

Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 15, 2008

Os dias do fim

Um dia habitarei uma ilha silenciosa
onde nenhuma voz se sinta bem
e aí permanecerei acordado
eternamente na transparência
apenas a olhar as palavras
sem as reconhecer

Miguel Godinho

sábado, janeiro 12, 2008

A corda

Nada nos prende
para além da memória

ao virar da página
a adolescência

o tempo (es)corre como numa enxurrada
e nós sempre
agarrados à corda das reminiscências
com medo de ir na corrente


Miguel Godinho


[escrito a propósito da questão dos "muros" das idades - tertúlia de Cabanas - quem lá esteve entenderá e quem não esteve basta reflectir minimamente sobre a vida]
O cansaço

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Ainda a ponte da Sé

Naquela ponte

escrevíamos as tardes
conduzindo os barcos

que lavravam a ria
ao cais da memória


ao longe uma casa isolada

no verde das águas
devolvia a brancura da cal
e o clamor da luz

recortava sempre
o silêncio das sombras


em frente da casa

o estreito
desenhado nos canais
diluindo no mar

o céu e a terra

Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 08, 2008

Subtrair a espera à espera

Desesperar
(ou subtrair a espera à espera)
com o tempo às costas
e ruir

assomar-me no beirado da memória
e ruir

todas as horas que passaram
foram séculos

sempre que me aproximo de ti
(em pensamentos)
esqueço-me da ruína

reconstruo o tempo

e a seguir
a ruína

Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Da importância das raízes

Fumarias agora com prazer
o pensativo cigarro da memória
sentado na cadeira imóvel
da casa dos teus avós (esses
que nunca chegaste a conhecer)
se alguém te tivesse ensinado o caminho
para lá se chegar

Assim, em vez de passares a vida a sonhar
com uma bela conta bancária
talvez pedisses apenas
a essa entidade suprema que
nos protege a todos
do perigo da insanidade
para não te esqueceres dos seus nomes

dessa forma
talvez deixassem de te doer tanto os neurónios
sempre que tentas compreender
o sentido da vida

Miguel Godinho