segunda-feira, dezembro 31, 2007

A tormenta

Ainda nem tinha começado
e já querias que acabasse

os horizontes de fogo
as promessas de conquista do mundo
e as viagens a sítio nenhum

todas essas horas em que
te arruinavas em pensamentos
eram muitas horas

camuflavas os compassos diários
e as tarefas por cumprir

a vida

o bolor surgia-te nas goelas
e aqueles assombros nocturnos…

ainda nem tinha começado
e já querias que acabasse

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Do que se diz

Eles queriam apenas poder dizer “dissestes”
e “masturbas o sexo”
sem que ninguém lhes chateasse os cornos
com teorias da literatura
e conjecturas gramaticais

Cá para mim
(Que nenhum purista leia isto)
a linguagem (ou a língua, whatever)
é como um garfo
serve para comer
e encher a barriga

foda-se

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Da claridade

Sentiste a manhã em tons de cinza
antes dos olhos se abrirem
e tiveste receio que o acordar
fosse demasiado violento.

Neste último sonho da noite uma inscrição:
“bem vindo ao cantar das sombras,
no silêncio dos dias encontrarás as palavras
que te dirão quem és”

Mais uma visão da casa em ruína
e a consciência da plenitude
na escuridão cerrada dos sonhos
– uma calma em que te descobres
constantemente perdido, uma busca incessante
pelo nome das coisas, pelo teu nome.

A vida pareceu-te de repente uma estrada estreita
e a manhã que te desligava da poesia nocturna, uma ponte.

Talvez as respostas viessem só com a claridade
talvez as palavras que te diriam quem és
não existissem no mundo dos sonhos
talvez fossem apenas horas de acordar
para mais um dia

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Ainda os dezanove

Numa química transitória
esse teu olhar antigo na minha direcção

como se me sussurrasses despindo-me
com palavras surdas ao ouvido
trazendo de volta a arte da transgressão
dos dezanove.

Reavivas-me a nostalgia da tarde em que me vi
lá longe e logo depois tão perto
dentro de ti a olhar-te as entranhas,
dentro de mim e da minha inocência

não valias nada e ainda assim te recordo
em tons violeta numa mancha que o tempo insiste
em guardar numa das gavetas da memória


Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 19, 2007

No seguimento da proposta feita pelo Pedro Afonso (na qual me pedia para nomear os meus 6 filmes de eleição), respondida no primeiro post de ontem, esqueci-me de nomear um 7º que de maneira nenhuma poderia ficar de fora. Até porque se falamos da 7ª Arte, talvez não seja má ideia escolher 7 filmes (?). Assim sendo, e utilizando a mesma justificação que já foi referida nesse mesmo post, o meu 7º filme de eleição é:

Trainspotting - de Danny Boyle

terça-feira, dezembro 18, 2007

O cenário

Desbravámos atónitos os dezanove
de cigarro na mão
a olhar a ria de frente e a sua quietude
numa mansidão incendiada por horizontes de fogo.
Um barco que passava rasgava sempre
um percurso perpétuo
nas aquaestradas dos sonhos vespertinos
enquanto a vida se sucedia lá fora inquieta
e nós aqui alheios a tudo menos ao momento

talvez se colhendo nesses tempos a constância
ainda agora pudéssemos lá regressar
da mesma forma, com dezanove de novo
e ver as marés

Miguel Godinho
Aceitando o desafio do Pedro Afonso, aqui seguem então os meus 6 filmes de eleição. Devo dizer que os referidos encontram-se a par de muitos outros. No entanto, serão estes talvez aqueles que mais fortemente marcaram a minha personalidade. Quem me conhece e já viu os filmes saberá dizer porquê. Nesse sentido, foram parte integrante da minha aprendizagem da vida. Fazem por isso parte da minha maneira de ver hoje as coisas. Lições, portanto. É isso que retiro dos filmes.

Kids – de Larry Clark

Lost in translation – de Sofia Coppola

A Clockwork Orange – de Stanley Kubrik

Pulp Fiction – de Quentin Tarantino

La Haine – de Mathieu Kassovitz

Crash – de David Cronenberg

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Das ausências

Queria apenas que me tivesses deixado
explicar-te a carência
para que agora não necessitasse
desta conversa muda
ou da percepção da incapacidade em abordar ainda
e sempre este assunto

palavras que custam tanto a dizer e
há assuntos que são tão difíceis de recordar
como este que há tanto tempo tento discutir contigo pai

logo logo serei capaz
ou talvez nem valha a pena
talvez seja melhor levares contigo o meu silêncio eterno
afinal foi essa a tua maior lição
com os teus silêncios me ensinaste
a emudecer

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Tu antes de ti

Enterras-te nas areias movediças
num mergulho abrupto

penetras-te e destapas o negrume

o som metálico do nada

no fundo do abismo
e o escuro da noite

lembras-te de ti
antes de ti?

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Tânia Carvalho canta António Variações

Deixemos a música explicar o que as palavras não sabem

O nosso nome

O nosso nome
por debaixo do tronco
e da raiz secreta

ele há sempre alguém
que também se apaga
junto com a árvore

nesse momento
quando o som do derrube
introduz o silêncio perpétuo
não há direito a palavras

a eternidade encarrega-se
de as escrever numa outra língua
inteligível para nós
que por cá vamos ficando à espera
da nossa hora

Miguel Godinho

terça-feira, dezembro 11, 2007

Do alto dos oitentas

E então subitamente
enquanto rachava lenha
do alto das suas 82 primaveras
a imagem num relance devolvida pelo reflexo
da janela da velha carrinha:
a inocência adolescente
essa que não tarda custaria a lembrar
apertada pelo espartilho do tempo
como se numa plena visão de consciência

o tronco lhe pudesse saltar dos pés
e a serra
acidentalmente fender-lhe a memória
separando-o de vez desses vestígios
que já começavam a esgotar-se

A infância é breve, dizia-me
enquanto pegava de novo no cepo
e se absorvia na tarefa que
há praticamente 70 anos cumpre
todos os Invernos.

Miguel Godinho


[alterado por engano na versão]

segunda-feira, dezembro 10, 2007

A cidade branca

Na cidade branca tudo é mais nítido
as formas, as cores, os cheiros, eu
em mim, translúcido

nas breves formas da manhã austera
rasgada pelo violento endoidecer
eu em mim a olhar para mim
na cidade branca
a enlouquecer em mim
foda-se

Miguel Godinho

domingo, dezembro 09, 2007

O fogo

Esperarei sempre por ti no fogo. E lembrar-me-ei sempre da dor que nos marcava. Sabia bem que o teu nome era fácil de pronunciar e que muitas eram as rosas no meu colo.
- Por onde andas hoje à noite?

Insisto em vociferar uma vez mais o teu nome na fria noite que se ergue. Se a chuva não cobrisse a vidraça desta forma os meus olhos arderiam nas chamas desta memória.

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Tunning

Nos cruzamentos verbais
as palavras dizem-se
a alta velocidade

Miguel Godinho

quarta-feira, novembro 28, 2007

[R] ar

Fico sempre na dúvida
quando publico (quero dizer, quando torno público)
algo que me vai na alma
não sei se por receio que me julguem
se por medo de R ar nu portuguez

Miguel Godinho

terça-feira, novembro 27, 2007

A distância

Só os fortes sobrevivem à melancolia
que lenta se instala, à retaliação do tempo
que passa sem se ver

eu não sou um desses

penetra-me novamente a alma
com a chama dos teus olhos e
revela-me a falha que nos desagregou
para que não tenha de curvar-me
diante dos dias que passaram
sem que pudesse olhar-te e rever-me
na demência das tuas [das nossas] ideias

Miguel Godinho

segunda-feira, novembro 26, 2007

sábado, novembro 24, 2007


Nos sonhos nunca conseguimos olhar-nos
sem que o desejo não nos percorra
rasga-me os olhos para que cegue
para que só veja negro no silêncio da noite

Miguel Godinho
Apagar a memória

Memória caos disforme
ruínas de histórias mortas
como pedradas no passado

para poderes apagá-lo

olhas em volta e
descobres-te contrariado
nesses momentos pretéritos

não são mais que conjecturas, dizes
não voltam a ser da mesma forma
não voltas a pertencer a esse caos

quem foste naquela reminiscência
com que direito te julgas agora
no futuro serás superior

memória caos disforme
retiras-te como se fosses senhor
de um tempo que querias ser só teu

para poderes apagá-lo

Miguel Godinho

sexta-feira, novembro 23, 2007

quinta-feira, novembro 22, 2007

As minhas ficções

À noite sou o som do vento
no silêncio da chuva
sempre que na calçada em lama
os teus passos imaginários
abraçam as minhas ficções

Miguel Godinho

terça-feira, novembro 20, 2007

A chuva

A chuva transporta-nos
clandestinamente
para os lugares antigos
enlameando-nos a memória

Miguel Godinho

segunda-feira, novembro 19, 2007

No seguimento do texto anterior

Os sons minimais
[ou o justo tributo aos ruídos e às vivências contemporâneos]

Os sons espremidos em sinopses nocturnais
qual visões acústicas espectrais, reverberadas na toxicidade
Densas sensações químicas na propagação do negrume
e rápidas aparições voltaicas que te penetram o intelecto,
espargidas em raios eléctricos

a curiosidade

faz-te navegar na imensidão de estímulos que lentos se instalam e
então declaras com um fechar de olhos o contentamento descoberto
arriscando extrair o sumo da iniciativa que te inteirou
da existência de cristais que revelam essas realidades ocultas

Miguel Godinho

quarta-feira, novembro 14, 2007

Os textos

Eu não sou poeta
eu não quero ser poeta
escrevo apenas textos
textos que retratam
a poesia das coisas
a poesia não está nos textos
está no olhar e nas coisas
nas mãos existe o olhar
no papel existem textos
textos que descobrem a poesia
textos que destapam a poesia
a poesia está no olhar e nas coisas
a poesia não está nos textos
eu não sou poeta
eu escrevo textos

Miguel Godinho
Conquistar
"é a consequência natural de um poder excessivo: é a mesma coisa que a criação e a procriação, quer dizer, a incorporação da sua própria imagem numa matéria estranha. É por isso que o homem superior tem que criar, quer dizer, imprimir sobre os outros a sua superioridade, seja enquanto professor seja também enquanto artista. Com efeito, o artista quer comunicar-se, e, na verdade, ao seu gosto: um artista para si próprio é uma contradição. Passa-se o mesmo com os filósofos: eles querem tornar o seu gosto dominante no mundo e é por isso que ensinam e é para isso que escrevem. Onde quer que esteja presente um poder excessivo, ele quer conquistar: a este impulso chama-se frequentemente amor, amor por aquilo sobre o qual se gostaria de se estender o instinto conquistador."
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, novembro 12, 2007

O real

Às vezes perdes-te
na percepção do tempo
e os canais da inteligência
violentam-te o entendimento
como se fosse razoável
esse caminho errante

é então que regressas
àquele olhar inocente
às paixões indizíveis
da loucura dos 18
esquecendo-te do guião
deste filme em que te meteste

às vezes perdes-te
nesse desejo de retorno
ao sofá da adolescência
como se pudesse
existir sensatez no facto de
termos de permanecer sempre
amarrados à brutalidade do real
ou lá o que quer que se chame
àquilo que nos obriga
a esquecer o interessante da vida


Miguel Godinho

sábado, novembro 10, 2007

As ruínas

Olho a nora em ruína e
penso nos milhares de milhas circulares
percorridas pelas mulas que
qual tractores pretéritos
acumulavam rodagens
sem carências lubrificantes
Olho a nora em ruína e penso
na ferrujem das engrenagens, no suor
das mãos antigas que tantas vezes inventaram
soluções para elevar as águas profundas
Olho a nora em ruína e vejo claramente
as ruínas da memória

Miguel Godinho

quinta-feira, novembro 08, 2007

Uma pausa para ir dar ao pedal...



AMSTERDAM
Novembro 2007

segunda-feira, outubro 29, 2007

terça-feira, outubro 23, 2007

Se ao menos conseguisse

Soluçava ele:
se ao menos conseguisse esquecer-te
como me esqueço de mim
arrancar da memória
o teu olhar
e o perfume
na brancura do silêncio
a tua presença, sempre a tua presença

e o corpo ardia-lhe
num êxtase nocturno:
(o suor nas costas)

se ao menos conseguisse esquecer-te
como me esqueço de mim

Miguel Godinho

quarta-feira, outubro 17, 2007

A dormência da tarde

Sentado
na mesa corrida
a brasa crepita
e o cheiro a sardinha
irrompe no ar.
O vinho caseiro descansa
no jarro estalado
e as sombras abrandam
a língua estendida
do cão a arfar.
É a cal que me ofusca
e uma turva visão tua
na dormência da tarde

Miguel Godinho

terça-feira, outubro 16, 2007

O que me punha sempre a pensar

O que me punha sempre a pensar
era o facto de saberes sempre as marés
mesmo que o cheiro metálico a mar
não te inundasse com a sua presença

do que melhor me lembro é do bigode
sujo de peixe fresco e de mim
a rir-me de ti enquanto a noite
na praia consumia o momento
esse, que a espuma das ondas datou

Miguel Godinho

domingo, outubro 14, 2007

O poeta inseguro II

Não se sentia realmente um poeta
porque pensava nunca encontrar
as palavras certas. Não conseguia ser objectivo
vendo-se frequentemente à deriva
na folha em branco, perdido no papel,
em busca das ideias.

Talvez ser poeta não fosse mais que isso:
um conquistador da percepção
um escultor de realidades, um idiota
sem catálogos à disposição,
um apóstolo das incertezas.

Ainda assim, desejava um dia
vir a experimentar o que imaginava sentir
um poeta poeta porque aí seria capaz
de exprimir o olhar sem hesitar,
sem sentir o erro nas palavras,
já que as palavras seriam o olhar
e o olhar não é impreciso

Miguel Godinho

sexta-feira, outubro 12, 2007



Torre AGBAR - Barcelona

Arquitecturas fálicas

Agosto 2007

quinta-feira, outubro 11, 2007

O poeta inseguro

O poeta inseguro olhava atento o mundo,
percorrendo todos os pormenores, qual leão faminto
que persegue a gazela, enquanto reparava
naqueles que a seu lado marchavam
sem a necessidade de cálculos pré-fabricados
para direccionar o olhar e escrever todos os instantes.
De novo, aquelas questões na sua cabeça:
Por que raio a convicção na verdade do olhar?
Para quê as repetidas notas sobre as coisas?
Não serão mais poéticos os instantes que se apagam
sem ninguém para os registar?

Miguel Godinho

quarta-feira, outubro 10, 2007

O olhar

Ele estava quimicamente alterado
pela embriaguês do momento.
Descobrira-lhe a inocência de repente

algures por entre o erotismo evidente
e a loucura feroz

de nada lhe valia tudo
o que aprendera até então
porque
o importante agora era apenas o olhar
desnudo e imoral numa bala
direita ao seu corpo
em busca do sangue

Miguel Godinho

segunda-feira, outubro 08, 2007


Em busca do vento


Círculos em busca do vento
que lento escorre o vapor
motor que gira e percorre
não morre sincero na bruma
esfuma a vontade de ver
morrer aqui de frente
para ti


Miguel Godinho

Caramulo - [Outubro 2007]

segunda-feira, setembro 24, 2007

A precedência

onde estão as palavras
do texto que ainda não escrevi
da precedência da invenção

que motores para a concepção
das ideias ainda nulas no vazio
esse sentir dormente

quem rega os solos de onde nasce
a vontade de olhar
a vontade de dizer

Miguel Godinho

terça-feira, setembro 18, 2007

As rãs

No meio das silvas que
sempre transpunhas timidamente
escondida de quem te observava
as rãs boiavam absortas
em largos nenúfares dourados
e o bucolismo da cena
não fazia prever o fim

Miguel Godinho

sexta-feira, setembro 14, 2007

O medo

às vezes assustas-te quando te digo
que me vou embora
não porque tenhas medo que eu vá
mas porque pensas que eu talvez
não esteja a falar a sério

Miguel Godinho

quarta-feira, setembro 12, 2007

Miguel Godinho

sexta-feira, setembro 07, 2007

Pormenores

admites-me os erros
porque te toco na alma
como se tudo o resto
pudesse ser omitido
como se lamber-me as feridas
fosse uma virtude
e os enganos que suportas
fossem apenas pormenores
tapo-te as frestas
por onde o sol espreita
por onde a brisa corre
e esperas por algo
- algo tão impossível
quanto eu, limpo de mim

Miguel Godinho

terça-feira, setembro 04, 2007

A fé

Queria ser mais e melhor que ela própria, sem saber bem porquê. Sem que algo alguma vez lhe tenha despertado real interesse. Nunca conseguiu ler um livro até ao fim. Nunca pensou profundamente nos filmes que viu. Nunca se questionou acerca dessa determinação em querer ser mais e melhor. Nunca se questionou a si própria. Queria apenas ser capaz de ser mais e melhor.

Miguel Godinho

segunda-feira, setembro 03, 2007

terça-feira, agosto 28, 2007

Abismo

Como era hábito, ela enroscava-se mansamente no sofá enquanto ele dedilhava, absorto, as teclas do computador – ela folheando uma revista, ele compondo infindáveis poemas.

Era o hábito de sempre. O mundo ficava, inteiro, lá fora e a intimidade reinava, em silêncio.

Dessa vez, porém, ela pousou a revista e ficou a olhá-lo. Intensamente. Enternecida. Longo tempo.

Deixa-me saber o que escreveste.

Ele um sobressalto. Pancada de gelo. Náusea. E depois, em voz arrancada, a leitura sussurrada do poema. Grande e ácido, compulsivo, um poema de solidão, feito de muros implacáveis, desencantos e securas. Nele jazia, irremediavelmente excluído, o poeta que o lia. E era autêntico, o poeta, na angústia do seu dolorido fiel.

Afundava-se a madrugada, corriam, punhais, os versos pela sala.

Silenciosa, hirta, ela ergueu-se e saiu. Como se nunca ali tivesse entrado.

Carlos Pinto Coelho, Magazine Artes, nº53, Agosto 07, p.26.

segunda-feira, agosto 27, 2007


Me ver-me

O ardor que procede
a contenda interior
no terror do encontro
a promessa da invenção
manto com que me cubro
para não me ver
-me

Miguel Godinho

segunda-feira, agosto 20, 2007

A mancha do tempo

Há um hiato na memória
entre o hoje e o ontem
uma linha difusa onde tudo
se mistura um espaço adulterado onde
me perco - uma frase com as
palavras misturadas. Com o tempo
tudo acaba por se ajeitar a linha
torna-se mais clara o espaço translúcido
e as palavras reescrevem a frase
ainda que completamente manchadas
pela tinta do tempo

Miguel Godinho

quinta-feira, agosto 16, 2007

Os macacos

os palhaços do circo jamaica
ficavam roídos de inveja
quando os macacos
entravam primeiro em cena

faz-me lembrar aqueles
que por aí andam e que
se tornam palhaços
quando o circo da vida
não os deixa actuar
quando querem

Miguel Godinho

terça-feira, agosto 14, 2007

DE COSTAS PARTI

miguel godinho

segunda-feira, agosto 13, 2007

És a tua ficção

És a tua ficção
uma ilusão criada
para te esqueceres de ti
um delírio exaltado
engendrado na infância
um pensamento heróico
para te esqueceres de ti

Miguel Godinho

terça-feira, agosto 07, 2007


No fim de semana passado visitei um local bastante interessante...
Aqui fica uma imagem do que se pode ver...
Exposição actual: "Pensa / Piensa / Think (a million ways to think)"
Felix Gonzalez Torres, Andreas Slominski, Aneta Grzeszykowska, Kris Martin, Tere Recarens, Elmgreen&Dragset, Guy Ben Ner, Gitte Shäffer, Ahmet Ogur e outros...

Centro d'Art de Santa Monica - Barcelona

Agosto 2007

segunda-feira, julho 30, 2007

O que nos fica de ontem
são ruínas nebulosas
simulacros que emendamos
conforme nos convém

Miguel Godinho

sexta-feira, julho 27, 2007


e um dia percebes que
há palavras que
só consegues pronunciar
depois de alguém te
ter ensinado a senti-las

Miguel Godinho

quarta-feira, julho 25, 2007

A ilusão

um desejo constante
essa vontade de retorno
à precedência da percepção
a uma inocência adolescente

recordas-te de ti
quando ainda não questionavas
as ausências de teu pai
quando desconhecias
a tormenta que se seguiria
recordas-te de ti
quando tudo era azul
quando ainda não te havias
transformado numa ilusão

Miguel Godinho

sexta-feira, julho 13, 2007

Sentado aqui


miguel godinho

quinta-feira, julho 12, 2007




que palavras

Que terminologia empregas
para que te alcancem
que lentes distribuis
para que te enxerguem
que paleta utilizas
para que te matizem
que palavras
para que te entendam
que palavras

Miguel Godinho

terça-feira, julho 10, 2007



quando as palavras encontram as imagens que as desenham

Miguel Godinho

terça-feira, julho 03, 2007

Mostra-me agora

Explica-me como é que
a memória não te recorda
da forma que desejavas

tantas histórias
que não me contaste
a ternura

mostra-me agora
que eu não
percebi em menino

fala-me das tuas ausências
da tua indiferença

mostra-me agora
para que eu consiga
olhar-te nos olhos

mostra-me agora

Miguel Godinho

segunda-feira, julho 02, 2007


Queria permanecer
sentado aqui
para sempre
a sentir
a sentir

Miguel Godinho

quarta-feira, junho 27, 2007

A teia

Ele próprio uma sombra indefinida
numa teia desarrumada
como se uma névoa de incertezas
elucidasse aquele passado desordenado
por onde o devir se foi entranhando

Miguel Godinho

quarta-feira, junho 20, 2007

domingo, junho 17, 2007


Está-se a compôr...

O teu alagar

Assisti ao teu alagar
(como numa inundação)
à ideia de esconderes as glórias
numa planície distante
para que ninguém mais (nem tu)
soubesse delas

Transformaste as tuas virtudes
em demências constantes
- o teu existir

Lembra-te que
essa tua tendência para o abismo
- um vórtice de loucuras constantes,
uma espera por algo que desconheces
pode de repente demolir-te
a decência e então escoas
por entre a caleira da vida

Miguel Godinho

quinta-feira, junho 14, 2007

Uma farda que te servia

Nas profundezas da tua pessoa
tu a olhares para ti
a gritares-te em tom de protesto
vaiado pela insegurança
vestiste uma farda que te servia
converteste-te numa coisa que não és tu
e agora… tu a olhares para ti
a gritares-te em tom de protesto
nas profundezas da tua pessoa
tu escondido de ti
diminuído de vergonha
numa farda que te servia
numa figura que agora é a tua

Miguel Godinho

quarta-feira, junho 13, 2007

As sombras nocturnas

Nos desejos adolescentes
a inocência talhada
será sempre assim
o Junho de 98
de novo aqui
e o cheiro a ria
eu deitado
na sombra nocturna
da casa fechada
na praia da ilha
o vento sussurra
será sempre assim

Miguel Godinho

terça-feira, junho 05, 2007

Continuando a conversa do outro dia...

Há indivíduos (na maioria das vezes relativamente jovens) que assim que se vêem com um cargo hierarquicamente interessante, passam a trajar uma pose bastante curiosa (...)

(...) São putos de trinta e poucos, talvez uns anitos mais velhos, alguma experiência laboral mas com a “lição já toda sabida”, afinal já adquiriram “as” manhas e um pouco de blá-blá-blá. Já têm a escola toda… É o género de pessoas que traz sempre a barbinha bem feitinha e o sorrisinho bem vincadinho na carinha, o típico Engº ou Drº que faz questão de franzir o grau como se vivêssemos ainda numa monarquia. É também o tipo de gente que se dirige aos “catraios” recém integrados no trabalho e que os trata como miúdos, como palermas, ou coisa que o valha, ralé, enfim, gentinha a quem é preciso mostrar quem manda.

Miguel Godinho

segunda-feira, junho 04, 2007



O mar em mim

Continuo a sentir-te
em tons de azul
de cada vez que olho o mar

não é verdade que as ondas
sejam uma metáfora
da tua inconstância

são apenas ondas
e eu gosto do mar ondulado


Miguel Godinho

quinta-feira, maio 31, 2007


O carimbo do tempo

Olhas as mãos
e não vês apenas as rugas,
a calosidade.
vês a vida, o ardor do carimbo arrebatado do tempo e
os cânticos das longas jornas de trabalho
no suor que te escorria a face

Sentes o cheiro a terra e a estrume
e [qual nódoas] regressam as pintas da cal
com que cobriste
os muros altos da quinta em ruína

Olhas as mãos e vês-te a ti, jovem
à espera de as tornares a olhar, velho
para que percebas que o tempo que corre
de um momento ao outro
só faz sentido agora,
ao olhares as mãos.


Miguel Godinho

domingo, maio 27, 2007



Faro

Aqui me encontrei
Uma e outra vez
Aqui me descobri
uma e mais vezes
nos covis desta cidade
nas entranhas das ruelas

aqui me perdi
uma e outra vez
como se dançasse
ao som dos lampiões urbanos
nunca era tarde demais
nunca me detinham com palavras
as palavras eram sempre poucas
o som era o que me movia
as luzes, os cheiros
as flores lilases dos jacarandás
o pôr do sol na sé
e os amanhãs despreocupados
os aliados sempre ali
e eu sem me aperceber que era eu
sem necessidade de ser eu
vagabundo errante
na sombra dos dias
nas longas esperas pela noite

Miguel Godinho

sábado, maio 26, 2007













As silhuetas talhadas

A cal em chamas
recortada na casa e
as silhuetas talhadas
no silêncio dos campos.
Há poesia nas sombras,
nos telhados, na nora
e no sol ardente
derramado no horizonte crepuscular
em sopros de ventos perfumados


Miguel Godinho

terça-feira, maio 22, 2007

Uma última vez

o teu olhar nu ou
a lancinante elegância que arruinou
o escudo que inventei

na confusão da escrita
deixo bem claro
na escura folha
que não te verei
uma última vez

Miguel Godinho

sábado, maio 19, 2007

A imagem

Assim de súbito
uma memória de sangue
e a cristalina imagem:
tu diante de mim
imaculada
como se nunca
te tivesses ausentado

de novo
uma lágrima que escorre
e tu a rires-te da estulta figura
que confecciono
de cada vez que a brisa de Verão
traz de volta
o sabor dos teus lábios

a lua continua cheia lá no alto
é como se permanecêssemos
para sempre deitados
na praia onde tudo começou

Miguel Godinho

quinta-feira, maio 10, 2007

Esculpir o silêncio

O vazio dos meus suspiros
e as lágrimas vespertinas
nos desertos áridos do nosso ser
as ilusões sensíveis nas curvas do olhar
e os sonhos recortados a cada instante

inflamo a dor com esses suspiros
esses hálitos inúteis esculpidos de bafio
agora é o olhar caído que pensa saudade
saudade dos tempos
em que pouco queria dizer muito

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 09, 2007

Há individuos (senhores e senhoras) na função pública que assim que se vêem com um cargo hierarquicamente interessante, passam a trajar uma pose bastante curiosa. Aderem ao clube dos chico-espertos e resolvem trocar as fraldinhas por camisinhas bem engomadinhas combinadinhas com calçinha de pinça creme já que assim pensam que conseguem algum respeito, como se não cheirasse a arrogância sempre que se esquecem de fechar a porta dos seus gabinetes.
Vidinhas...

terça-feira, maio 08, 2007

O momento

é sem aviso que se aviva
a mais remota infância.
de repente a linha ausente do tempo
riscada no papel em branco
borra-se como mancha imaculada

é então que percebes que
o mistério que te fez grande
foi apenas o enevoamento
desse passado distante

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 25, 2007

De mão dada

um dia descobrimos
nas desordens de hoje
as mentiras que construímos
os pilares em ruptura

um dia espreitamos
pela reixa da memória
e entramos em colapso
uma paranóia que se instala

um dia desobstruímos
o túnel de acesso
aos pretéritos imperfeitos
uma viagem assombrosa

um dia tombamos
nas lembranças inexistentes
como uma que tenho de ti
de mão dada comigo

Miguel Godinho

terça-feira, abril 24, 2007

Em carne viva

Descubro a tua voz
nos destroços das minhas indústrias
nos vícios que me definem
na clemência com que me exibo

retrato emoldurado na memória
- é como se existissem palavras que
só o teu silêncio soubesse dizer,
que só na tua imagem fizessem sentido
sons que se me inscrevem na pele
como se passasses por aqui
em carne viva, para me alentar

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 23, 2007

Lembro-me

Lembro-me
de mim
quando te esquecias
quando estavas demasiado
ocupada para te lembrares
lembrares-te de ti
esquecendo-te
esquecendo-te de mim
esquecendo-te de nós
esquecendo-te que
éramos um só
um


Miguel Godinho

sábado, abril 21, 2007

Os muros

Tal como as pessoas
também os muros caem
essas fiadas de pedras ao alto
que se desmontam
para voltarem a ser o chão
que tapamos de alcatrão

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 16, 2007

A ponte da Sé

Nus nos nossos sítios
era assim que nos sentíamos
sentados serenos sem necessidade
de roupagens nem regras

Rente à linha a ponte da Sé
o cheiro a óleo e a maresia
os barcos e
a constância despreocupada
daqueles crepúsculos tão extensos

agora reparo
a noite já não cai na ria assim
é como se tivéssemos vestido as roupas
outrora desnecessárias

Miguel Godinho

sábado, abril 14, 2007

Os lugares antigos

Vejo sempre caras e nomes
encarcerados
nos recantos perdidos da mente
esses sítios nublados

tombamos sempre nos lugares antigos
nos escombros da memória
essas ruínas que reconstruímos
sempre que por lá passamos

Miguel Godinho

sexta-feira, abril 13, 2007

Os soldados anónimos da vida

Os soldados anónimos da vida
esses que deambulam por entre
um existir incógnito
são a imaculada memória do nada
numa inocente batalha pelo espaço.
Por onde vagueiam sabemos
- esses gélidos sítios de ausência
na bruma da noite invernal

Ainda assim se preocupam
como se alguém se fosse lembrar deles
como se valesse a pena estarem vivos
e merecessem permanecer aqui
junto de quem nunca os chorará
junto de quem os finge não ver

Miguel Godinho

quinta-feira, abril 12, 2007

Do passado o presente se apropria

Do passado o presente se apropria
reivindicando a prescrição do antigo
- esse passado enfarpelado de hoje
coberto com uma jaqueta moderna
uma fatiota ligeiramente recomposta
a camisa por dentro da calça
e um corte de cabelo mais aprumado
num corpo que é sempre o mesmo

para mim o progresso é um embuste
uma imitação, um decalque, um dejá vu
uma visão renovada do que sempre foi
uma passagem pela constância
por onde o tempo vai circulando

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 11, 2007

O passeio das incertezas

Tropeçar nas esquinas do pensamento
e lavar a cara na chuva reminiscente
a face escondida num espectro de luz e
o cheiro na sombra que me embala
escorrego no passeio das incertezas
e embato nos pilares que me sustentam
- os trajectos das ideias são perigosos
as cartografias dos terrenos não existem

e os caminhos conduzem-me sempre ao mesmo destino
uma memória tua

Miguel Godinho
As palavras que dizem muito

Às poucas palavras que dizem muito
digo-lhes que muito as procuro
por entre as muitas palavras
que dizem pouco
da mesma forma que te procuro
por entre as frases por conceber
como se a razão da minha escrita
fosse o desejo do nosso encontro

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 09, 2007

As ideias

As ideias
- é aí que se sustentam os entendimentos
uma sucessão de colisões voltaicas

os olhares
são vórtices de absorções
é como nas saunas –
as transpirações desses sentires
nas experiências que me ensopam

voltando às ideias
são sentimentos que se confrontam
em instantes que circulam
à velocidade das naves espaciais
pedaços de energia que voam zum zum
para que [num nanosegundo]
me sinta idiota
quando me penso

Miguel Godinho

domingo, abril 08, 2007

São tantas as vezes

São tantas as vezes que
que nos escoamos
por entre as caleiras da vida

Miguel Godinho

quinta-feira, abril 05, 2007

Os meus olhos nos teus

despeço-me de ti
uma vez mais

é como se a sobremesa dos dias
fossem os nossos desencontros
as nossas distâncias, as renúncias
momentâneas

mas a fateixa que nos ancora
num entrançado de rotinas correntes
continua fixa, como os meus olhos
nos teus

Miguel Godinho

terça-feira, abril 03, 2007

E se

E se me sentisses
apenas nos gestos
no toque que te completava
nos braços que te abarcavam

e se soubesses
que isso nunca mais
voltaria a acontecer

apenas nos gestos
no toque que te completava
nos braços que te abarcavam
nunca mais
voltaríamos a acontecer

Miguel Godinho

quinta-feira, março 29, 2007

A força das correntes

Rios de mim
por entre as colinas
de relevos irregulares

essas águas que correm
livres
entre as margens do ser
transportando os
seixos rolados

também as pedras viajam
também elas se desgastam
moldando-se
à força das correntes

Miguel Godinho

terça-feira, março 27, 2007

A escassez nas transacções

Fechaste o poema
para o balanço das somas
esperando receitas proveitosas
sabendo de antemão
da escassez nas transacções

Miguel Godinho

segunda-feira, março 26, 2007

As imagens são palavras que as desenham
as palavras são imagens que as desenham
os desenhos são imagens que as apalavram

Miguel Godinho
Os pedintes

Nas mãos do incerto
somos pedintes
como que
palavras enviadas
às páginas virgens
no branco imaculado
dos terrenos fecundos

somos pedintes

consumidos na tempestade
das idades incertas
à guarda do vento e da chuva
numa rebelião de glórias fortuitas
à espera das horas
que os minutos devolvem
às garras do tempo

Miguel Godinho

domingo, março 25, 2007

Os tempos indefinidos

Alumiaste a ruela
dos tempos indefinidos
mas agora
assim sem mais
restam apenas as memórias caídas
de um passado violento

a recordação do tempo em que
te incendiavas
procurando o deleite
de um presente diverso
apagou-se
no desejo que te ajeitava,
é como se
a tinta desses destroços reminiscentes
tivesse caído
e o cimento que sustinha
os pilares do teu ser
se desfizesse em pó
esse pó que se cheira e se espirra

Miguel Godinho

quinta-feira, março 22, 2007

A opacidade que te envolve

O ar metálico da tua face
nos olhos que te observam
uma gema sedutora
uma nódoa de sangue

infliges uma embriaguês magnética
uma espiral que adormece

sinto-me fantoche às tuas ordens
boneco zonzo sem liberdade

mas

abstrais-te do prazer
ajeitas-te para as investidas
e a opacidade que te envolve
desvia-te desses atributos

Miguel Godinho

quarta-feira, março 21, 2007

As invenções ardis

Todas as minhas ideias
são sobre ti
destroços de danças
em palavras soltas e
alegrias breves em
textos sem pontuação

mas

deita-te a meu lado
quando quiseres
lembra-te do tempo
em que nem eu nem tu
éramos nós: dança
nas palavras soltas,
nas memórias curtas de
risos breves e
quadras largas

estas são
as invenções ardis
engendradas para combater
a nossa ausência
agora

Miguel Godinho

terça-feira, março 20, 2007

Ausente

Questiona a tua memória vestida
com
as cores do tempo, adormecida
nas
recordações o agora de frente
sim
recorda a dor presente, tu
quase
sempre ausente

Miguel Godinho

sábado, março 17, 2007

Há poesia nas ideias breves

Há poesia nas ideias breves
pedaços de magia que brotam intensos
reflexões românticas que vêm e vão
imensos rasgos de luz concisa
embriaguez de sonhos curtos
momentos estreitos que o vento conduz

essas meditações tão sumárias

só os românticos as tentam agarrar
riscando cadernos em noites escuras
como se a poesia dessas ideias
não existisse no momento
em que se as esquece

Miguel Godinho


A ausência II

O cansaço cicatrizou-te a súplica e
o desejo de retorno a um tempo
sem tempo esfumou-se por
entre este universo de quimeras
que habitas

agora

só resta o estigma que assevera a dor
e a dor que afirma a ausência
a tua

Miguel Godinho

quarta-feira, março 14, 2007

“...Lo fugitivo permanece y dura...”
F. de Quevedo

Escorrias-me pelas mãos
Como água que se esgota
num caudal resumido

o efémero sempre permanece

ainda que te retires
aqui te demoras firme
numa memória de sangue
sanada
na metáfora que te descreve

Miguel Godinho

domingo, março 11, 2007

Pratiquemos o silêncio

Pratiquemos o silêncio
que nos transporta de volta
às inúteis glórias de outros tempos
Soltemos a ira pelo que
não fizemos tentando com isso
aperfeiçoar a técnica que
usamos para adormecer as memórias
desses tempos em que
sem consciência do presente
éramos felizes

Miguel Godinho

terça-feira, março 06, 2007

O afirmar da constância

A promulgação do sol de Março
autoriza a cor que adorna
as arenas onde
a luta pela continuidade permite
o romper do novo

Estas elites floridas que surgem
nos campos expostos aos primeiros raios
não é mais que o despontar do que
se renova, idade após idade
como se a mutação dos mantos fosse
o afirmar da constância
esse pigmento inato que nunca se altera

Miguel Godinho

domingo, março 04, 2007

Não te lembras de quem és

Não te lembras de quem és
o silêncio que te acompanha
as cores escuras que te vestem

Confessas uma ausência
uma demora hesitante
marcas o compasso como se
almejasses um retorno à ideia
a ideia de quem eras
- um tempo de lágrimas imutáveis
essas pingas de cor que te amparam
mas
não te lembras de quem és

Miguel Godinho

sexta-feira, março 02, 2007

Os temas que desejas

Os temas que desejas
aquilo que te interessa

não é mais do que
um pedaço de ti

assuntos à escolha
expostos em montras
vitrinas cheias de
personalidades várias

pegas no que queres
negoceias o que não tens
o que queres ser o que
no fundo sempre foste

Miguel Godinho

quinta-feira, março 01, 2007

As veias do mundo

O tempo corre nas veias do mundo
esse corpo disforme que envelhece
na memória das gentes

Miguel Godinho

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

A ausência

O cansaço cicatrizou-me a súplica e
o desejo de retorno a um tempo
sem tempo esfumou-se por
entre este universo de quimeras
que habito

agora

só resta o estigma que assevera a dor
e a dor que afirma a ausência
a tua

Miguel Godinho

domingo, fevereiro 25, 2007

Kulsi yeggan, ala taben’emmet d waman

“Tudo (o que existe) dorme, excepto o rancor e a água”
Provérbio Kabyl, Enciclopédia berbere, IV, A 179. Aman, p. 559.

As águas que não dormem

As nascentes férteis das palavras
nem sempre estão ao alcance da vontade
há que escavar e construir
os acessos aos mananciais
essas fontes que brotam do fundo
da alma e alagam o sentir
intensos ardores que como
nascentes de fogo arrojam
por vezes a lama como nas
enxurradas que tudo arrastam
tornando sensíveis os campos
onde novas árvores tentarão crescer
qual sínteses de mim
e as constantes correntezas do tempo
que sempre me escrevem a dor
poderão continuar fluentes
como as águas
que não dormem

Miguel Godinho

sexta-feira, fevereiro 23, 2007


Patrimónios hidráulicos algarvios – memórias de outros tempos

O acesso à água tem sido uma preocupação constante ao longo dos tempos. Desde tempos pré-históricos que o Homem tenta “controlar” o acesso à água, inventando maneiras de a “ter à sua disposição”, tentando sempre fixar-se o mais próximo possível desta. Assim, nas descobertas arqueológicas, verificamos que os povoados mais antigos se situam quase sempre junto a um curso de água. A grande maioria dos vestígios arqueológicos ligados à ocupação humana dos territórios aparece perto destes.
Entre os romanos, já se edificavam, com frequência, cisternas, mas principalmente aquedutos e barragens (muitas delas exageradamente robustas), para assegurar o abastecimento de água às cidades e villae, num esforço de garantir o seu abastecimento. Mas antes disso, já os egípcios tinham desenvolvido complicados sistemas de canais e diques que chegavam a percorrer centenas de quilómetros para abastecer zonas pobres em água. E antes ainda, é bem provável que as regiões ao norte da Mesopotâmia já detivessem importantes conhecimentos hidráulicos. Mas é sabido que foram os povos árabes aqueles que se celebrizaram pelas tecnologias de aproveitamento das águas ainda que não se possa atribuir a estes a “invenção” dos elementos de elevar e transportar a água, conforme sustentam as teorias tradicionais. Foram eles possivelmente os responsáveis pela introdução de alguns destes elementos na península ibérica mas o grande desenvolvimento destas tecnologias resulta de toda uma construção de saberes provenientes de tempos anteriores, como se percebe. Este facto estará em muito ligado ao tipo de clima que as regiões de onde são oriundos apresentam, à irregularidade das chuvas, à inacessibilidade da água, à escassez da mesma, à instabilidade do clima. Podemos por isso, afirmar que os árabes difundiram o uso dos poços e dos sistemas elevatórios de água, ao passo que os romanos se singularizaram no aproveitamento das águas de superfície.
O Algarve beneficiou muito com todos estes desenvolvimentos e todas estas sucessivas introduções de novas tecnologias relacionadas com o aproveitamento das águas. Aqui, soube-se aproveitar e melhorar todas as tecnologias ligadas ao aproveitamento da água para a irrigação dos terrenos agrícolas e para todos os consumos domésticos. Desde cedo se edificaram complexos sistemas de irrigação dos terrenos e de aproveitamento das águas das chuvas e dos mananciais subterrâneos. Na região, temos testemunhos edificados provenientes do período romano (barragens / açudes), passando por cisternas construídas pelos árabes, e muitíssimos outros elementos que foram sendo construídos até ao séc. XX, de onde se destacam as canhas, um elemento subterrâneo de condução das águas ainda não estudado na nossa região e de possível introdução árabe.
Hoje em dia, é bastante evidente que fontes, poços, noras, aquedutos, tanques, cisternas, represas, moinhos de água, são formas arquitectónicas que individualizam a paisagem da nossa região, afirmando a forma como o homem se relacionava com o território utilizando o seu engenho e arte no aproveitamento da água para a sua sobrevivência e actividades. E digo relacionava uma vez que a realidade hoje em dia é bastante diferente. Embora muitos desses elementos ainda existam, têm hoje em dia uma apresentação totalmente distinta em relação ao seu aspecto de há cerca de cinquenta anos atrás – o abandono causado pelo desuso é uma evidência clara, nos dias que correm.
Num trabalho realizado recentemente pude verificar que existem no concelho de Vila Real de Santo António para cima de 400 elementos (noras, poços, cisternas, tanques, etc) distribuídos um pouco por todo o concelho (que é relativamente pequeno, comparado com outros da mesma região). A maioria estava desaproveitada. Grande parte em ruína. Alguns reformulados, tendo a força motriz e alguns dos materiais de construção sido substituídos. Uma fatia considerável associada ainda a lendas e à religiosidade popular. Todos eles com muitas memórias inscritas.
Torna-se extremamente importante estimular a reflexão da comunidade relativamente à importância que têm os patrimónios hidráulicos. Ainda que seja muito difícil recuperar todos estes elementos, deve sem dúvida reafirmar-se a necessidade de revitalização e a utilidade cultural que têm. O levantamento, registo e estudo dos elementos da cultura material ligados à água, que o homem utilizou e/ou utiliza para beber, lavar e regar é um meio de preservação, mas no mundo actual em que vivemos (principalmente nesta região) é muito difícil proteger fisicamente estes elementos. Ainda que se apresentem como testemunhos da forma como o homem se relacionou com o território utilizando o seu engenho e arte no aproveitamento da água para a sua sobrevivência e actividades, as necessidades actuais são outras e o valor que se atribui por cá à preservação da memória ainda é muito reduzido. A factura que se acabará por pagar, caso não se faça nada para alterar a progressiva situação de abandono destes patrimónios, resultará no esquecimento desta realidade que outras gerações viveram e, no fundo, na perda de mais uma realidade na essência que nos define, enquanto algarvios e enquanto mediterrânicos.

Miguel Godinho

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Hoje gostava apenas de agradecer aos senhores filhos da sua mãe da PT que me desligaram o telefone e, por conseguinte, a Internet. Ontem, quando lhes liguei, após cinco dias sem ligação e pensando cá na minha ingenuidade que seria algum problema momentâneo na rede – cinco dias a pensar: o problema vai já passar… - parolo – trataram de me informar (muito cordialmente) que no dia 27 “talvez” passasse um técnico lá por casa. Fiquei tão contente. Duas semanas sem ligação. Alguém iria pagar por duas semanas de não-utilização e de deslocações se quisesse aceder à net, pensei. Talvez esse alguém seja eu. Talvez.
Miguel

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

A memória destes dias que passam,
constantes esboços de aparições frustradas
vislumbres formais de texturas caducadas
retratos sonoros que os ventos traçam
na memória destes dias que passam.

Miguel Godinho

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Dos nossos espinhos nasce

Ouço o silêncio das nossas vozes e
declaro o som da tua
da nossa
ausência. Que clara a luz
distante da escura névoa que nos esclarece
que branda flor aquela
que nasce dos nossos espinhos
a chuva já cai num breve punhado de lágrimas
e o espectro de luz assoma-se
como que numa memória
de um tempo que é sempre igual
de uma história já contada

espero aqui por ti
enquanto a censura acontece
enquanto este segundo durar

Miguel Godinho

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Depois disso

Depois disso
anuncio constantemente uma
nova compreensão de vida uma
reinvenção da moral abstracta tento
renovadamente um parto
de mim próprio uma
nova postura uma
ideia reformada um
novo olhar
acabo por retornar sempre
à mesma realidade como
se não soubesse outra como
se nunca tivesse reservado nada como
se o conceito que imaginei deixasse de
fazer sentido no
preciso momento em que
é engendrado
depois disso sou outro
depois disso sou o mesmo
sempre sou sempre
eu

Miguel Godinho

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

As palavras certas

Há dias em que as mãos insistem nas teclas erradas. Dias em que após várias horas passadas em frente ao ecrã, à espera de ver sair “as” palavras, finalmente apercebemo-nos que isso não é possível. Nestes dias, raramente passamos das três primeiras linhas. Podemos até conseguir mais que isso, mas mais cedo ou mais tarde, voltamos atrás e apagamos tudo, de novo. E a tarefa, repetir-se-á umas boas vezes. Porque simplesmente, nesses dias, não é possível. E este é um desses.

Nos dias em que as certezas não têm palavras
as palavras certas não existem.

Miguel Godinho

domingo, fevereiro 11, 2007

As danças fúteis

Há uma sombra cósmica existencial,
uma imortalidade adjacente, como que
uma justificação transcendental em tudo isto.
A intemporalidade das ideias essenciais,
presente nas palavras que nunca mudam
converte-se numa sequência
constante de descobrimentos do nosso ser.
É aí que permanece a noção do Eu,
essa que nunca se chega a ter
nestes espaços adulterados de hoje,
neste baile de danças fúteis.

Miguel Godinho

sábado, fevereiro 10, 2007

Haraquiri da mente é corromper o presente, tentando reanimar uma sombra inflamada pela chuva de um Inverno sem silhueta.

De vez em quando, verte uma memória de ausência.

Miguel Godinho

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Tudo é causa de tudo e provoca consequências que se tornam causa de outras consequências.

Teoria do caos

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

A Nora de Cacela [II]

A água que jaz no fundo da nora
de Cacela espera pelo alcatruz que
já não circula na corrente daquele
engenho oxidado. A mula que fazia girar
o eixo corroído pela idade já não se presta
ao esforço e o senhor que pacientemente
lhe cobria os olhos com o ferrolho
trava agora uma sólida luta contra o tempo.
A nora estranha a condição de já não
poder puxar a água do fundo do poço
depois de tantos litros de labor
e a labuta das terras por agricultar
já não pertence nem aos homens nem
às bestas deste Algarve apartado
de hoje. A paisagem de esquecimento de
anos e anos de dor, sofrimento e alegria
é óbvia e vai ditando o cessar da essência
deste cantinho plantado por entre
serra, prédios e mar.

Miguel Godinho

terça-feira, fevereiro 06, 2007

A corrente do esquecimento

Que forma tem uma ideia?
qual o seu peso, a sua estrutura,
a sua materialidade?
E que cheiro tem essa ideia,
qual o seu sabor, a sua textura?
Onde se reclamam as ideias perdidas?

Houve um conceito que repetia o nome da eternidade. Abruptamente, deixou-se seguir na corrente do esquecimento e escoou, remando nos braços da sorte que tão depressa a trouxe a esta cabeça como assim a levou de volta, repondo a preços de súplica um retorno à inocência dos bolsos vazios… de ideias.

Miguel Godinho

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Cumprimos rigorosamente o ritual da mais
antiga solidão. Desenhamos palavras, que se
inscrevem no papel, como se fosse pedra,
para que as chuvas as amaciem, roubando-lhes
a rudeza das consoantes. Limpo-as da sua casca,
como os lenhadores fazem aos troncos,
descobrindo a matéria fresca que enche as
veias da frase, humedecendo a boca. Mas tu,
que te apressas em direcção à saída, ouve
ainda o que te dizem: «Viajante, aqui te
esperamos, sempre.» E quando saíres, o sol
intenso da manhã impedir-te-á de saber onde
estás, ou se cada um dos prédios que te rodeiam
é, afinal, um fragmento de coluna, que um
deus irado quebrou. Depois, habitua-te ao presente;
e faz da árvore do centro, a que resiste no seu
canto, guarida de sombras e de aves,
a provisória habitação do seu sonho.

Nuno Júdice, Geografia do caos, Assírio & Alvim, 2005, p.64.

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Aqui agora para sempre

Escondíamo-nos das palavras débeis
que nos definiam
e borrávamos o texto que escreviam aqueles
cujas canetas compunham
pesadas arquitecturas imaginadas
tentámos apenas uma vez
abrir o livro que
contava a história das nossas infâncias
e compreendemos os passados de cada um
Foi assim que a desconexão do mundo
nos colocou no mesmo tabuleiro
e eis que nos encontramos aqui agora
para sempre

Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 30, 2007

A minha morada

Revelar na dor do Ser
o estimado e imprevisto regaço
indefinido presente na imaculada
sensação de constância
- um empenho inscrito no desejo constante
de retorno ao desgosto criativo de sensações
cálidas e genuínas

Estranhas a minha tendência
para o negro, ainda que saibas que
é essa a minha morada, ainda que custe a
crer na terna doçura que é a melancolia,
essa suave brisa de sensações
cálidas e genuínas

Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Os espelhos nem sempre falam verdade
nem sempre dizem tudo
nem sempre têm palavras para
mostrar que aquilo que vêm
nem sempre é o que olham


Miguel Godinho

sexta-feira, janeiro 26, 2007

A mão que te devora

Gritar-te palavras inquinadas e
extrair-te dos lábios palavras sujas
A turva definição do pensamento
é a imagem que descreve
a mão que te devora
agora
Roça-me a razão com a insónia
que te adormece de prazer
e permite-me manar o fluxo
que nos completa

Miguel Godinho

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Um texto que se reescreve

Há um texto que nos acompanha
toda a vida qual escultura que se
vai talhando. Uma peça de barro que
se modela sem que nunca se ajeite
um assunto que nunca se finaliza, que
jamais se encerra, um tema sem tema.
Esse texto escreve-se com o passar dos anos
é o vento que o pontua, a chuva que
o desfigura e o sol que alvitra
a luz que lhe corrige e castiga os erros.
Todos temos um texto que se reescreve
que se apaga, que não queremos finalizar
demorando a caneta, tentando que
não perca a tinta e que alguém consiga
entender a caligrafia por vezes nervosa
por vezes impaciente, por vezes excitada
Como se a vida se pudesse escrever
num mesmo texto, como se
o texto fossemos nós.

Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 24, 2007

É um vírus em mim

É um vírus em mim
uma máquina que labuta
e desconexa
um pensamento que acorda violenta e
afronta a razão que me prende
suavemente constantemente
É assim que esqueço que o anseio sempre
me avassala

é um desejo que não alcanço
uma intenção deliberada
uma peçonha
uma luta essencial que
se ganha hoje e se
desbarata amanhã
É um vírus em mim


Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 22, 2007

O dilatar das pupilas

Não estranhei o dilatar das pupilas nem
a ausência que sempre adornou o sentir
uma incomunicabilidade latente
numa fadiga de axilas receosas

desta vez seria diferente, poderia ter sido

uma dor exígua num espaço vulgar
quase sempre o mesmo, perpetuamente indistinto
uma sensação estranha, imperturbável
um embrulho que se paga caro

uma vida que deixa de o ser

um ardor

Sinto que breves se tornam as memórias
e os rasgos da calosidade da alma
fazem-me experimentar
estes nocturnos pesares, insuportáveis

e é assim que por breves instantes
desço do extâse e caio em desgraça
no imenso mar de uma dor que é
existir desta forma.

Miguel Godinho
"Escrevo livros porque quero saber como terminam"

José Eduardo Agualusa

domingo, janeiro 21, 2007

Wax Tailor - Hypnosis Theme

A vida é um estado hipnótico. Ao contar até 3 irão acordar e não recordar nada. Nada. Por muito que custe a alguns.

Miguel Godinho

sexta-feira, janeiro 19, 2007








Foi no grande lago salgado da Tunísia que vi pela primeira vez uma miragem. Quão sublime é um imenso espaço vazio, onde o chão é sal, onde o sal é água, onde o sal é céu.





Miguel Godinho

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Primeiramente
Aquilo que procuro primeiramente ao ler um poema não é perceber o que o poeta estava a sentir ao escrever o texto. Pretendo sim que o poema me transmita algo, que me desperte algum tipo de emoção, que comunique comigo, que me acenda uma luz interior. No fundo, quero que o poema seja capaz de me arrancar algum tipo de agitação interior – é dessa forma que entendo que se deva processar o primeiro contacto. No fundo, espero que o poema me transmita uma imagem emotiva, sensorial. Primeiro o poema comunica comigo, por si só. Depois e só depois, o poeta e o seu poema.
O mesmo se aplica à pintura, à escultura e a todas as artes. É a obra isolada que deve comunicar primeiramente e não o artista. Para mim, o valor da obra reside nela mesma. Só depois me interesso por contextualizar a obra na vida, no sentir do artista. É certo que tudo na vida tem um contexto e deve ser entendido como tal, mas também é certo que a arte tem o poder de se abstrair do seu contexto para se fazer valer autonomamente. Porque no fundo, o seu contexto somos nós e não apenas quem a executou.
Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Amanhã quem sabe

Há uma arrogância excessiva na
forma do mundo olhar o mundo
Uma alienação aflitiva que absorve
e nem mastiga
o ruído disforme da cidade
É como que um indiferença que
impressiona pela imoralidade latente
Vidas que se corrompem
umas às outras sem que se apercebam
minimamente, descaradamente, evidentemente.
No entanto
Marcamos constantemente o compasso desta rotina
e cumprimos todos os dias à regra
o toque do alarme das oito
prometendo uma e outra vez que
não enlouquecemos hoje
amanhã quem sabe
Que palco este em que nos encontramos
de manhãs difíceis e tardes melancólicas,
hoje, amanhã e depois
é tão evidente quanto pagar impostos
e acabar deitado numa cama
oito palmos abaixo desse mundo
que olha o mundo com olhos de confiança
como se tudo fosse fácil de entender
Como se amanhã tudo se tornasse mais fácil...

Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 16, 2007

O que é a Aparição?

Primeiro olho a folha em branco, depois sinto o perfume que dela brota, seguindo com a caneta os sinais indiciadores de uma presença que lentamente se assoma para finalmente se anunciar. De onde surgem estas inscrições com que marco as páginas? De onde provém a ideia que me força a exprimi-la? Que força é esta que me impele a borrar esta folha com um texto que há pouco não estava destinado a existir?
Importa perceber os mecanismos que levam este desejo (o qual existe primeiramente enquanto nada, depois sob a forma de ideia para por fim convocar obsessivamente a necessidade de materialização sob a forma de texto escrito) a tornar-se verdadeiramente um desejo. Porque primeiramente o desejo não existe, nem a concepção que o formula. Primeiro existe uma paz, depois um tormento, como se inicialmente fosse um sossego e posteriormente uma necessidade para, por fim, se tornar inteligibilidade. Que reacções se desencadeiam na mente para que sejamos compelidos a exprimir uma concepção, neste caso sob a forma escrita?
É o momento da inscrição, que se segue ao inferno da confrontação do moldar da ideia, que define a aparição. Primeiro o nada, depois a necessidade de confrontação para finalmente se permitir a inscrição. Quietude, pensar, inferno, beatitude. Primeiro a folha em branco, depois a necessidade seguida do confronto para finalmente se concretizar o registo.
O que sente uma pessoa no momento da aparição? Que luz é essa e de onde vem? De onde provirá esse rasgo de anunciação que subitamente nos assola, reclamando uma ordenação?
A aparição é o momento em que a ideia é expressa, em que a mesma se inscreve, ordenada. A aparição é a materialização (sob que forma seja) da ideia barroca, disforme e (ainda) incompreensível. A aparição é este texto que agora existe no papel e que anteriormente existia em bruto na minha cabeça. E que antes ainda, nem sequer existia.

Miguel Godinho

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Ser e não ser eu ou
ser eu não o sendo
acabo por ser dois
sem saber qual deles sou
acabo não sendo nada
por querer ser
quem não sou
sendo que sou tudo
por não saber já
quem sou.


Miguel Godinho
Por vezes dou por mim a tentar perceber o presente. Parece que de repente me escapa o passado, como se me tirassem o tapete da memória debaixo dos pés. Paro, escuto e não ouço a memória. E então tenho de aguardar que ela regresse, como se esta fosse autónoma, como se tivesse vida própria. Sou eu a tentar aceder a um ficheiro da memória, eu a tentar aceder a mim. Um pouco à semelhança do que acontece com os computadores, quando não respondem de imediato a uma ordem e ficam a pensar até que finalmente executam a operação. Por vezes qualquer coisa corre mal e é necessário encerrar a operação para executá-la de novo. Há ficheiros que por vezes não abrem porque se danificam, sem que ninguém lhes mexa. A memória é isso mesmo. Uma série de ficheiros que necessitam de uma duplicação de suportes para que não se danifiquem e se percam. Convém reproduzi-los materialmente para que isso não aconteça. A escrita pode cumprir essa função.

Miguel Godinho