quarta-feira, janeiro 30, 2008

O jazz

Sopros de um vento abstracto
num crescendo inconstante de luzes e sombras
e sentir o vazio a encher-se de harmonias
numa floresta povoada de delírios
– é como contar uma história a alguém
que já a viveu na pele e agora se descobre de novo
e dizê-la e senti-la de uma forma tão natural
como o jazz

Miguel Godinho

Bom, muito bom [2]

Root 70

para quê palavras?

Bom, muito bom [1]

A minha mais recente descoberta (e aquisição) musical

segunda-feira, janeiro 28, 2008

O Martim Moniz

Em que pensam estas criaturas anónimas
dormentes imunes à vida
enquanto transferem beatas sonhadoras apagadas
de uma mão nervosa para outra
numa alienação prostituída?

Uma voz surda penetra constantemente
as ruas num canto solene ao deus dará
enquanto cadáveres deambulam
por entre ilusões extintas de uma vida melhor

A dor insiste constantemente em despir-se
nas calçadas encardidas
e nós comodamente sentados a passar de carro
e a desviar o olhar da pureza da cena
ninguém gosta de ver uma velha a caminhar nua pelas ruas
nem que queiramos ver nisso uma encenação teatral

O que esperam estas criaturas da vida?
o mundo esqueceu-se delas
como elas se esqueceram do mundo

Ao fundo da rua um homem foge dele mesmo
envolto numa nuvem branca de fumo esbracejando
a ressaca que teima em desgrenhar-lhe os longos cabelos sujos de carcoma
os suores frios são lâminas que dilaceram
e eu quase que as sinto a cortar-lhes a pele

Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Ó nosso Algarve do céu azuli
[versão actualizada de um texto antigo]

em homenagem a Jean Pierre Fonseca dos Santos

Antigamente, eram muitas as bocas com fome
mas ainda assim se decoravam casas e carroças e barcos
e o que fosse sem que o aparato precisasse de um Mercedes
estacionado a uma porta de madeira podre, sem que o prato
do almoço se esvaziasse de conteúdo só para que o vizinho soubesse que

- aqui o papá tem um 320 enquanto ele, um simples 220!
Eram tempos em que não faltavam banhos de luz, de um sol
tão ofuscante que queimou passados e fez arder
memórias de dias duros, de miséria, de sangue.
Hoje em dia, já não há barcos nem campos de figueiras
nem alfarrobas nem burros cansados de dorso marreco.
Agora, já só se conhecem marrecos cansados e sujeitos burros.
O algarvio cantante ficou dormente e comprou um barco
que não pesca, nem apanha choco à luz da candeia
nem sai da doca que agora é marina. Mas o barco lá está
à espera da penhora para poder navegar para outras bandas.

Esta é agora a terra do algarvio de segunda geração
e primeiríssimo nível, que partiu para França há vinte anos
e que vem constantemente de vacances com uma ideia para a retraite:
investir numa pastelaria, lá na aldeia, é isso que faz falta.
Traz sempre um casaquinho novo de cabedal,
uma gravatinha verde e bolinhas amarelas
e muitas calças de fato de treino para combinar com a malhinha.
Tudo novo – para que se saiba.
Saltou do anonimato por causa da casinha branca lá no monte
que o avô deixou (à custa do contrabando trazido do lado de lá da fronteira)
e pintada agora de rosinha-choque para dar no olho
Dá que falar na vizinhança pela ligeira transformação da moradia
acrescentou-lhe quatro quartos, duas suites, uma piscininha. E as divisões
têm boas áreas! Os compadres não se cansam:- É um bom vizinho, não faz barulho,

só cá vem uma semana por ano!

Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 21, 2008

A louça suja

Massajas a louça suja
como quem mexe num bordão para o excitar
deixando-me firme só de olhar
queres nos lábios ou lá em baixo, meu tesouro?
era aqui mesmo enquanto esfregas
os restos dos pratos oleados do peixe frito
nas mãos ocupadas de coisas insignificantes
sepulta-o enquanto a água quente cai
e grita por mais
eu estou cá é para te auxiliar

Miguel Godinho

domingo, janeiro 20, 2008

Four Tet-Hands

Da complexidade

O entendimento escarnece de nós constantemente
sempre que a vida ganha um sentido diferente
e a nomeação da matéria volátil incendeia-se
junto com a efemeridade do seu novo significado
As palavras
tudo o que elas dizem é insuficiente
para descrever as CORES os SONS o SILÊNCIO
Escrevemos a vida de uma maneira e logo depois
obrigamo-nos a queimar o papel
na impossibilidade de um sentir absoluto
As mãos jamais agarrarão a complexidade
resplandeceremos sempre com o insondável
ainda que uma ingénua tendência pretenda sempre
agarrar o todo ainda que a certeza da intangibilidade
oriente essa busca incessante pelo inexprimível

Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 16, 2008

O disparo

Um tiro certeiro às palavras
numa visão que as sangra no papel

Na fúria de dizer
primeiro o sentir, depois o disparo
e a energia da bala propagada
na folha moribunda

(escrevo para matar um sentir)

Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 15, 2008

Os dias do fim

Um dia habitarei uma ilha silenciosa
onde nenhuma voz se sinta bem
e aí permanecerei acordado
eternamente na transparência
apenas a olhar as palavras
sem as reconhecer

Miguel Godinho

sábado, janeiro 12, 2008

A corda

Nada nos prende
para além da memória

ao virar da página
a adolescência

o tempo (es)corre como numa enxurrada
e nós sempre
agarrados à corda das reminiscências
com medo de ir na corrente


Miguel Godinho


[escrito a propósito da questão dos "muros" das idades - tertúlia de Cabanas - quem lá esteve entenderá e quem não esteve basta reflectir minimamente sobre a vida]
O cansaço

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Ainda a ponte da Sé

Naquela ponte

escrevíamos as tardes
conduzindo os barcos

que lavravam a ria
ao cais da memória


ao longe uma casa isolada

no verde das águas
devolvia a brancura da cal
e o clamor da luz

recortava sempre
o silêncio das sombras


em frente da casa

o estreito
desenhado nos canais
diluindo no mar

o céu e a terra

Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 08, 2008

Subtrair a espera à espera

Desesperar
(ou subtrair a espera à espera)
com o tempo às costas
e ruir

assomar-me no beirado da memória
e ruir

todas as horas que passaram
foram séculos

sempre que me aproximo de ti
(em pensamentos)
esqueço-me da ruína

reconstruo o tempo

e a seguir
a ruína

Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Da importância das raízes

Fumarias agora com prazer
o pensativo cigarro da memória
sentado na cadeira imóvel
da casa dos teus avós (esses
que nunca chegaste a conhecer)
se alguém te tivesse ensinado o caminho
para lá se chegar

Assim, em vez de passares a vida a sonhar
com uma bela conta bancária
talvez pedisses apenas
a essa entidade suprema que
nos protege a todos
do perigo da insanidade
para não te esqueceres dos seus nomes

dessa forma
talvez deixassem de te doer tanto os neurónios
sempre que tentas compreender
o sentido da vida

Miguel Godinho