sábado, outubro 04, 2008

Aqui vos deixo o texto que resultou da apresentação do 1º livro de poesia do Pedro Afonso, "Ainda aqui este lugar".
Ainda aqui este lugar

É com grande orgulho que assisto à edição do primeiro livro de poesia deste grande amigo, de longa data, que é o Pedro Afonso. Este jovem e emergente poeta algarvio nasceu em Faro, em 1979, e é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas. É um dos membros fundadores do sulscrito, círculo literário do Algarve, faz parte da direcção editorial da revista literária Sulscrito e está representado na Antologia de Novos Poetas Algarvios – Do Solo ao Sul, editada pela ARCA (2006), na Antologia de Poesia Portuguesa Actual – Poema Poema, editada em Espanha (traduzido para castelhano) e na Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, editada pela Exodus, em 2008. Publica ainda regularmente no blogue A pedra, que mantém desde 2007.
Sou amigo do Pedro desde os onze / doze anos, desde o tempo em que começámos a questionar o mundo. Frequentámos a mesma escola preparatória e desde então tornámo-nos fortes amigos, atravessando juntos os momentos mais interessantes das nossas vidas – a adolescência, a juventude. Quase a partir do momento em que nos conhecemos, passámos a reunir-nos frequentemente para descobrir e partilhar a vida, as ilusões e as desilusões, os sucessos e os insucessos, as felicidades e as infelicidades de cada um. Apercebi-me desde logo que uma das características que melhor define a sua personalidade é a necessidade constante de se questionar, e, nesse sentido, de se enfrentar e/ou de se confrontar, quer para testar e perceber os seus limites e/ou limitações, quer para perceber o que há para além deles/as. Por isso mesmo, contava já que, de alguma forma, este livro que agora publica, seguisse essa mesma atitude.
“Ainda aqui este lugar” é um conjunto de poemas que se apresenta reunido numa obra de confrontação entre dois eus que existem em dois momentos temporais distintos, o eu-de-agora e o eu-de-ontem, mas que se confrontam no plano liso da percepção mental (onde não existe uma noção de ontem, de hoje ou de amanhã - conceitos normalmente entendidos de forma autónoma e separados entre si). Veja-se o excerto do poema da pág. 17 (“o mundo é um novelo na minha memória lisa”). O presente é pensado aqui em confronto com o passado, mas numa tábua lisa/plana de continuidade perceptiva – o agora, onde os conceitos de passado e presente se juntam num só, conforme referia atrás. Talvez por isso, o passado não tenha neste livro uma expressão rigorosa, um momento exacto, já que no livro não se verifica uma única referência a um momento específico do passado.
Assim sendo, este é, também, um livro de memória mas não de memórias, uma abordagem ao que foi e que não volta a ser da mesma forma (essa certeza transparece ao longo de toda a obra - há uma plena consciência disso mesmo), as imagens com que esse passado se faz representar hoje em dia e o efeito que elas produzem no entendimento da vida.
O método empregue para o objectivo proposto - o de se tentar compreender o presente olhando para o passado - revela-se extremamente semelhante ao método arqueológico. Veja-se o excerto do poema presente na pág. 47: “(…) assim procuro por debaixo das minhas / raízes onde cotão e memórias crescem / mas nada por lá está onde é possível ver / há coisas que caem e aparecem no sentir / onde os olhos e o faro não trabalham no saber”. Note-se aqui, conforme se referia atrás, essa clara ideia de reinvenção da memória. Em todo o caso, o acto de revisitação conduz-nos sempre a uma reinvenção, e logicamente a uma reinscrição – a chave para a compreensão do livro e a justificação para o próprio título do mesmo – “Ainda aqui este lugar”. Esse lugar que o título aponta não é um lugar físico, é antes um lugar abstracto: é o lugar da memória que continuará a ser continuamente e continuadamente visitado e a ser apreendido e concebido de forma diferente.
A finalidade deste livro é, quanto a mim, a tentativa de um posicionamento mais sólido no momento presente, a compreensão de quem se é hoje, através de um mergulho na memória (o confronto).
Justamente como referia atrás, e tal como numa escavação arqueológica, o método empregue aqui é o da demarcação do terreno/território afectivo e/ou emocional, através da aplicação de uma quadrícula bem definida nos elementos que compõem esse território afectivo, para, de seguida, se prosseguir para o estudo pormenorizado de cada um deles - as 4 estruturas / partes que dividem a obra:
A moradia – que, quanto a mim, traduz o emaranhado emocional onde agora nos movemos (veja-se o excerto do poema da pág. 25 “a mesa espera-te posta / a cada manhã lucente / e o que nela se acumula / são os restos depostos / de uma humanidade”);
O muro – traduzindo talvez a distância / o tempo (pág. 9 “já só a sombra daquele fogo / na distância que se adensa / ou talvez as mãos ainda sujas / que atravessam regressando / do fumo o toque resistente / inflamado na pele fresca da infância / talvez de pedras brancas erigido / um muro que te corte a memória / e te guie as águas rápidas / pela rua da qual o reflexo vigio”);
A casa ao fundo – talvez as primeiras emoções, aquilo que facilmente se dissipa da memória (pág.51 “(…) o rápido brilho secreto / de uma evaporação absoluta / aqui / resta a sombra / das coisas em queda”);
A imitação do jardim – o que se consegue recuperar através desse revisitar da memória / das memórias – (pág. 39 “o sol rasga por entre as árvores / um tigrado exótico no chão do jardim / pombos pavões patos passos de flor / e de dentro de um arbusto móvel / sai uma coisa qualquer viva de sangue / se ficam pegadas neste chão tão ido / é porque alguém lhes segue a sombra”).
Portanto, aquilo que o Pedro faz é “desentulhar” as sucessivas camadas de terra e de pó para, por fim, deixar á vista a estrutura que o define hoje em dia e que foi sendo engrandecida e/ou empobrecida ao longo do tempo: a “moradia” onde hoje habita. Veja-se o poema da pág.30: “É neste corredor cego / de atravessar os dias / que os pesadelos nos tocam / as pestanas vivos na escuridão / um sangue escorrido / que te acompanha o frio / pegadas do teu corpo sempre”.
Assim sendo, “ainda aqui este lugar” é uma declaração de que somos o resultado de sucessivas camadas sensitivas, de um amontoado de experiências acumuladas ao longo da vida. E sendo este um tema tão difícil de ser expresso verbalmente, este é, também por isso, um livro compacto, de uma densidade absoluta. Aludindo a uma das nossas referências adolescentes, diria mesmo que aquilo que o Pedro procura transmitir é que “o que éramos ainda somos, mas o que somos, não sabemos”.
Assim sendo, queria por último deixar uma palavra de apreço à editora “4 águas” que tornou possível este livro e que, da mesma forma, também hoje aqui se estreia na sua actividade editorial, ao Fernando Esteves Pinto e ao Victor Cardeira pela excelente iniciativa que teve no sentido de contribuir para a expressão dos autores algarvios e, mais uma vez dar os parabéns a este grande amigo que é o Pedro Afonso e desejar-lhe o maior sucesso na sua carreira literária que agora, com a edição deste livro, adquire um novo fôlego.

Miguel Godinho

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