Os nossos dias (13)
[Ontem transpus a noite]
Ontem transpus a noite com a mente repleta de sonhos
e na penumbra das sombras adormeci
nada nem ninguém capaz de me obstruir as intenções
nunca uma necessidade de salvação tão colossal
lambi um dedo cheio de cores e de vida
e de luz, como quem beija um gelado
e ali me demorei à espera dos vultos enquanto contemplava o infinito
rápidos movimentos sanguíneos num percurso determinado
e o presente-agora comandado pelo desejo e as ideias a vaguearem
por entre as ruas entrelaçadas numa dormência
o riso das pessoas chegou mesmo a coçar-me a cabeça
e seus cabelos adormentaram-me a viagem
vastas porções de transeuntes a esquecerem-se de mim
enquanto lhes gritava ao ouvido palavras de silêncio
na vida tudo passa, tudo morre (assim que nasce), tudo mesmo
as ideias são assim e a noite de ontem também foi
um minuto desde que a galguei com a mente repleta de sonhos
até que me esqueci de vez de mim ao percorrer todos os bailes
cheguei inclusive a olhar-me lá de cima
(a vertigem de nós próprios é uma sobremesa deliciosa)
toda a gente de braços no ar à espera deles mesmos
num carrossel de fantasias a descarrilar toneladas de impressões
(a dopamina subiu bastante o valor por litro
e nem nós nem ninguém nas ruas com um camião encostado em protesto
não há ninguém para defender esta esfera sectorial)
foi assim a minha noite, toda a noite e mais um pouco do outro dia
à espera que os lobos à solta uivassem mais alto que eu
foi assim a minha noite, a caminhar na solidão
Miguel Godinho
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