sexta-feira, maio 31, 2013

monólogo, 3

podia ser mais um dia, um dia igual aos outros, uma extensão de tempo que acontece sem que se dê por isso, esse tempo que passa por nós e nos põe velhos sem que nos apercebamos, mas amanhã terá um significado diferente, amanhã será o dia dos putos, o dia dos nossos filhos, amanhã será uma daquelas ocasiões que traduzem a felicidade de podermos ver a descendência a crescer, uma semente de nós que brota e se desenvolve e se fortalece a cada dia que passa, e nós a sentirmos que o puto que pusemos no mundo tem a sorte de poder ser feliz, ainda que o tenhamos de expor à merda que hoje em dia o rodeia, aos entraves que lhe criámos e continuamos a criar, que alguém lhe criou, mas deixa isso da mão, aproveita a felicidade de te poderes olhar ao espelho e te veres em ponto pequeno, nós somos um pouco mais nós ao vermos o reflexo desse sonho que se concretizou: olha para ti, miguel, tens trinta e três e tens aí um tu em ponto pequeno, tens uma família, e és feliz, aproveita que amanhã é dia de saíres para o campo, para a praia, e dares um chuto na bola com essa relíquia, estima-a bem e ela estimar-te-á bem também, oferece-lhe amor e experiências e não objectos e desfruta porque amanhã é dia de, também tu, seres puto outra vez

segunda-feira, maio 27, 2013

espreita-se os jornais e não é difícil perceber que não é só a questão da crise e a perversidade que dali advém - da crise e dos jornais, o horizonte tentacular dos seus efeitos, a extrema direita de novo assanhada e, à semelhança de outros tempos, a conquistar adeptos insuspeitos para as suas trincheiras, a alemanha agora com um programa de crédito para as nossas empresas, a alemanha, sim, a alemanha, e com a possibilidade de participar no seu capital, ou seja, de poder vir a mandar nelas, mas como é que se pode alinhar neste esquema?; é a crescente xenofobia, a violência gratuita, os radicalismos idiotas, a merda toda a vir ao de cima outra vez, não aprendemos nada nestes últimos cem anos, será que alguma vez aprendemos alguma coisa? até na poesia se sentem os sinais da merda que abrilhanta os nossos tempos: mas porque é que o novo livro do herberto hélder tem de ser tão caro, essa celebridade tenebrosa da poesia, mais parece um aproveitamento comercial da qualidade literária de um artista maior, os leitores a pagarem uma gula editorial, qual agarrados que dão o cu e as calças pela próxima dose de libertação.
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MG 2013

sexta-feira, maio 24, 2013

monólogo, 2 [ou isto não dura para sempre]


esquece por um instante os anos que carregas e abandona todos os compromissos que assumiste, todos os deveres e obrigações de agora, desresponsabiliza-te, iliba-te de convenções, anarquiza-te nem que seja por um segundo, grita se te apetece gritar, não te preocupes com os outros porque os gritos são para ser ouvidos, não queiras saber se a tua obrigação é estares alerta, ninguém morrerá se te desfocares por um instante, fecha os olhos se necessário, desata-te da rotina que te obriga a ser quem és, de que vale seres quem és se já não és livre, se já desististe de sonhar com o que gostarias de um dia vir a ser, depois de seres o que sabes já ter sido? já te apercebeste que os anos te vão roubando, lentamente, todas as memórias, tudo se vai esfumando, tudo se vai esbatendo, não te venham com merdas agora que esta mensagem servirá apenas para anunciar que fechaste a porta aos que insistem em oferecer-te amarras, cobrir-te de correntes, agrilhoar-te ao mundo de todos os dias, à tela do computador, à televisão que insiste em pôr-te cada vez mais burro, desliga a televisão, destrói a televisão, vais ver que de repente se fará luz na tua cabeça, quando alguém te tentar repreender, já sabes o que fazer, carregas no interruptor, está mesmo aqui esse interruptor, és tu quem o controla, a autoridade és tu, basta desligares por um segundo, esquecer que já és crescido, que sabes tudo, tu não sabes nada, tu tens dezasseis, faz como se tivesses outra vez dezasseis, anarquiza-te, desliga-te e sê feliz, sê feliz que isto não dura para sempre
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MG 2013

quarta-feira, maio 22, 2013

pois, o martim

pois, o martim, esse puto dinâmico, empreendedor e diligente, que decidiu ainda com borbulhas na cara fazer pela vida e que agora circula na net como o miúdo que aos dezasseis encarou sem medos um touro académico com o argumento do «mais vale pouco do que nada», argumento esse que nos vai a todos enraband.... – eh lá, cuidado com a língua – entalando (assim fica melhor) na ganância capitalista dos salários de miséria. a verdade é que o puto, atirando-lhe uma resposta fácil (mas adequada), a calou: também, na realidade de hoje, calaria qualquer um. depois, vieram logo muitos em defesa da raquel, que por muito que custe tem de admitir que não foi o momento nem a circunstância e se não queria ser enxovalhada nas redes sociais devia ter deixado o puto brilhar perante uma audiência que está mortinha por empreendedorismos pititi e heróis de palmo e meio que são capazes de afrontar os senhores doutores e o bicho da crise. a realidade no seu melhor.
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MG 2013

terça-feira, maio 21, 2013

monólogo [ou a arte de saber abrir os olhos]


abre os olhos, abre os olhos porque na vida são mais as coisas que se perdem do que as que se ganham e há uma verdade primordial que te acompanha todos os dias, e tu nem agradeces, nem te apercebes que neste preciso momento és o homem mais realizado do mundo, por isso dou-te uma simples sugestão: reconhece o facto de estares vivo e de teres saúde, e trabalho para pagares as contas, ainda que cada vez mais tenhas o monstro da insegurança à espreita: esquece por breves instantes o medo, o facto dos homens quererem cada vez com mais força destruir o mundo, e dá um beijo grande à tua mulher, ao teu filho, um beijo imenso com baba, destina-lhes o maior abraço que conseguires, oferece-te o maior abraço que consigas dar-lhes, agradece-lhes o facto de eles existirem na tua vida, de eles serem a tua vida, do teu filho ser uma fotocópia tua – já reparaste nisso hoje?, um espelho teu, um tu em ponto pequeno – e atenta que tu que não és mais do que um ele em ponto grande, é só isso que importa, é só isso que importa, o amor, o estares rodeado de coisas boas, coisas destas, coisas celestes, coisas que te cegam os olhos de contentamento, um nirvana dentro de ti, e está tudo tão próximo, tudo isto que te faz feliz, vives todos os dias e nem agradeces, é só isso que tem valor no teu mundo, é só isso que importa: abre os olhos e aproveita o momento, abre os olhos antes que esta realidade se transforme numa coisa outra
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MG 2013

sábado, maio 18, 2013

números

hoje em dia, tudo se resume a uma tabela de excel, números, pessoas, abstracções. como se todas as coisas pudessem ser algarismos, tabelas nas quais se analisam convergências, tendências, aumentos ou recuos. é assim com a dívida, é assim com as falências, é assim com as taxas de desemprego, com as mortes e os nascimentos. números. tudo cresce, tudo diminui. é assim. os números aumentam ou diminuem. tudo bem. é assim, a vida: taxas que crescem ou diminuem. números. de acordo com o último relatório anual de segurança interna, divulgado no passado mês de março, entre 2011 e 2012, o número de participações de violência doméstica diminuiu, passando da 28.980 para 26.084, enquanto o número de homicídios conjugais aumentou de 27 para 37, no mesmo período. aumentaram, portanto, os números de mortes pelo companheiro. mortes pelo companheiro: de 27 para 37. mais 10. é assim. números. este sábado mais uma mulher de 59 anos foi assassinada com tiros de caçadeira pelo marido, na localidade de formigais, no concelho de ourém. é assim: números.
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MG 2013

quarta-feira, maio 15, 2013

agora mesmo


agora mesmo pareceu-me ter outra vez metade dos trinta e quase quatro que tenho já em cima e lembrei-me do tempo dos cigarros fumados nos bancos do liceu, daqueles que de barriga vazia batiam na cabeça quando entrávamos para a aula das oito e meia, das tardes em que pela calada assistíamos a filmes obscenos, não dos que agora passam em todos os telejornais da noite mas daqueles que víamos às escondidas e que arrumávamos numa gaveta recôndita, por trás da estante dos livros ou debaixo do colchão com medo que se soubesse que os víamos. agora mesmo bateu-me a saudade dos dias em que as paixões rolavam à velocidade da luz, aquelas que nos cegavam e que dizíamos serem para sempre mas que nunca foram para mais de um mês. agora mesmo fui criança outra vez e, metido neste gabinete recôndito, pus-me a redigir um poema do fundo da algibeira, convicto de que isso seria muito mais valioso e essencial do que o cumprimento de tarefas necessárias nestes projectos fundamentais já que isto da vida só acontece uma vez - cada vez me convenço mais, e da maneira que isto está, mais cedo ou mais tarde vão rolar cabeças, deus queira que sejam as dos que merecem que isto com um filho para criar seria muito mais complicado. agora mesmo, quase que sem aviso – parece que estas coisas surgem assim do nada – apeteceu-me sorver tudo de uma só vez, extinguir todas as coisas más que me reserva esta breve passagem, lamber as memórias antigas para que elas me entrem outra vez na barriga como um gelado, e gritar em alto e bom som a inaudita ideia do cardoso: ah, como é linda a puta da vida
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MG 2013