terça-feira, abril 22, 2008

Lê-se nos olhos

Lê-se nos olhos, senhora doutora
não é necessário dizer que não

uma pancadinha nas costas e
uma lambidela no senhor doutor
(por debaixo da secretária talvez resulte melhor)
no coiro de seus sapatos italianos
assim se ascende mais um grau
nessa carreira promissora

uma cartada jogada cautelosamente
um arranjinho criteriosamente pensado
afinal, nós prosperamos é por intermédio das habilidades
cada um desenrasca-se como pode

resignar-se, a senhora, ao pódio dos derrotados
e viver na sombra de algum senhor sem brilho?
Deus a livre de tamanho infortúnio

Miguel Godinho

sexta-feira, abril 18, 2008

Os nossos dias (7)
[A febre]

Temos febre, muita febre
sempre que o telemóvel toca na cabeceira
às oito menos um quarto

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 16, 2008

Os nossos dias (6)
[A novela]

Dorme. Esquece-te de ti
envolve-te na ruína e enquadra-te na apatia
enterra-te bem fundo antes que te lembres de onde vens

porque os dias não são todos iguais
são quase todos iguais mas não são bem
tanta confusão na cabeça provocada pelas luzes, pelo movimento
e pelos ambientes violentos em que circulas
tantos doutores a quererem ser doutores
à tua volta é só superioridades

dorme. Esquece-te de ti
as manobras por um mundo melhor
são tão inúteis quanto esse teu desejo

porque dos dias já só decorrem fracassos
sucedem-se as horas e nada de importante acontece
encosta-te nas ilusões e adormece
tanto crápula de fato e gravata
à tua volta são só enganos
a vida não é só um posto ou um belo ordenado mas
é sempre um bom tema de conversa entre colegas e ao jantar

dorme. Esquece-te de ti
envolve-te nesse manto, esquece-te do dia
liga a televisão e vê a novela

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 14, 2008

As primeiras memórias [2]

Lembro-me de muito pouco da casa de S. Luís. Para além da moto, da cama, da pequena horta do meu pai (e do seu bigode a roçar-me a cara), da televisão da vizinha Gertrudes, nada mais. É interessante o facto de não possuir memória alguma da minha mãe ou sequer da minha irmã, por esta altura. Nada. Duas pessoas que são e sempre foram absolutamente fundamentais para mim e nem uma única recordação.
A casa onde vivíamos localizava-se em torno de um grande quintal ao qual se acedia por um grande portão de ferro que dava para a Estrada de S. Luís. Era necessário abri-lo e percorrer um grande corredor, depois uma imensa escadaria e por fim percorrer o quintal até bem lá ao fundo. A mim parecia-me tudo grande, o portão, as escadas, o quintal. Hoje sei que afinal era eu que era pequeno. Afinal, o portão não passava de uma simples porta.
Nesse quintal estavam localizadas várias casas, como que escondidas do reboliço urbano que, diga-se de passagem não tinha muito de urbano, por aqueles tempos em que lá vivíamos. A nascente daquela zona da cidade existia apenas o bairro da Penha, bairro esse que não teria mais de duas dezenas de casas térreas e uns poucos prédios de dois ou três andares derramados por entre algumas estradas, a maioria de areia. A desordem urbanística só muito mais tarde se viria a tornar evidente.
A rotunda do Hospital ainda não existia nem tão pouco a Avenida Calouste Gulbenkian. Lembro-me perfeitamente da sua construção e do espectacular simulacro que os bombeiros lá fizeram, penso que por alturas da sua inauguração. Acho que foi esta a última memória registada, associada àquela casa. A partir daí houve um vazio e nem me lembro sequer da mudança, que sem dúvida deve ter sido constrangedora. É estranho mas, revisitando estes tempos, dou por mim e encontro-me já a viver num sítio cuja casa-de-banho não passava de um buraco no chão e de uma espécie de alguidar embutido na parede. Este seria o local onde três pessoas viriam a ter de fazer a sua parca higiene diária, durante os próximos seis ou sete longos anos.

Miguel Godinho
Os nossos dias (5)

Na falta de uma utopia
um grande nada enquanto engordo
refastelado na doença do corpo

a janela tem boa vista e o sofá
dá para deitar. Posso sempre
puxar a mesinha de apoio
e descalçar-me de mim

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 09, 2008

As primeiras memórias

Quando nos mudámos para S. Pedro, vínhamos de um despejo repentino da casa onde habitávamos, em S. Luís. Nessa altura tu eras muito nova e tinhas saído de casa muito à pressa porque querias ir viver com o Manel. Devias ter uns dezassete ou dezoito anos mas já sabias muito da vida. Nunca percebi realmente se gostavas mesmo do Manel ou se o que querias mesmo era alguém que te ajudasse a sair daquele ambiente de ruína. Nunca partilharia contigo a minha opinião sobre esse assunto, nem agora, nem nunca.
As primeiras memórias que tenho de ti ainda dizem respeito a acontecimentos passados naquela casa de S. Luís. Eu devia ter provavelmente uns quatro anos. Recordo-me perfeitamente de uma moto que me ofereceste num período em que estive doente. Lembro-me de percorrer os lençóis nela, de viajar incessantemente o dia inteiro montado no seu banco. A moto cabia-me na palma da mão mas acho que foi o veículo mais interessante que tive até hoje. Gostava de poder pegar hoje no meu carro e regressar àqueles lençóis.
Nesse tempo ainda não tínhamos televisão. A única pessoa que possuía um aparelho desses era a vizinha Gertrudes que vivia na outra ponta do quintal e, como era normal naqueles tempos, era para lá que toda a gente se mudava aos sábados para ver já não me recordo que programa.
O meu pai tinha no quintal uma pequena horta cercada onde plantava couves, hortaliças e outros vegetais que de momento não me recordo. Ao fundo do quintal construiu um pombal improvisado com umas madeiras que frequentemente recolhia e era lá que criava rolas e pombos que alimentava com bocados de pão duro. Recentemente fui descobrir fotos nossas desses tempos, do meu pai comigo ao colo, e o certo é que parecíamos os dois muito felizes.
O meu pai tinha um bigode muito grande e forte. Outra das minhas primeiras memórias têm que ver com o seu bigode a rasgar-me a pele quando me beijava e do misto de dor e prazer que sentia. Quase sempre fazia isso depois de estar alcoolizado. Eu sentia claramente o forte odor a bebida e hoje percebo que foi esse vício que condicionou toda uma série de sonhos (incluindo os meus) e que ditou o futuro pouco interessante de algumas pessoas.
Miguel Godinho

terça-feira, abril 08, 2008

Prelúdio
Ensinaste-me o caminho para lá chegar e agora sei percorrê-lo, até de olhos fechados. Provaste-me subtilmente que não há outra forma para se caminhar senão com os pés bem assentes, talvez por isso não seja hoje capaz de criar ilusões para não consentir desilusões. Não era teu, não eras minha. Mãe ou irmã - que interessava isso?
Percebi contigo que um grão de areia poderia explicar o deserto pois, se bem te lembras, também me demonstraste que uma simples coisa podia explicar uma grande coisa. As partes são no fundo a imagem do todo, eram essas as tuas palavras. Lembro-me perfeitamente do início - de quando me mudei para tua casa porque a vida em casa da mãe era fodida - e observo agora a degradação dos dias de hoje. Talvez tenha sido sempre assim. Possivelmente neste caso a degradação não foi crescente, talvez tenha existido sempre o mesmo nível de degradação. Mas a degradação sempre existiu na nossa família e com ela sempre convivemos. Digo isto porque o desenrolar da vida mostrou-me que tudo se degrada (ou as tuas lições é que me fizeram ver o mundo dessa forma), tudo se constrói para ruir. Bastava olhar para a maçã que deixavas no quintal, em cima do vaso sem flor e que pedias para ninguém tocar. O bolor inundava a fruta. Nunca percebi muito bem qual o objectivo mas parece que gostavas de mostrar a ti própria e talvez mostrar-me a mim também que tudo caminha sempre para a sua degradação. Um simples acto que explicava a Vida. Duas das tuas maiores lições: o todo explicado claramente pelas partes e a degradação progressiva das coisas.

[1º texto de um extenso conjunto]
Miguel Godinho

domingo, abril 06, 2008

A Verdade

A Verdade é perfeita demais para poder ser exposta no papel

Miguel Godinho

sexta-feira, abril 04, 2008

A constatação

Sei que pareço um ladrão (de assuntos)
mas há tantos que eu conheço
que parecendo aquilo que não são
são aquilo que eu pareço

terça-feira, abril 01, 2008

A memória

Nesta sala quieta o silêncio dispersa-se rapidamente. É como se o mar invadisse o espaço sem uma onda de aviso. Nas vidraças rectangulares deste prédio pouco habitado uma luz fugidia irrompe serenamente na penumbra. São muitas as vezes em que os gritos desse silêncio revelam o teu nome. Nenhum som me perturba mais do que a forma do teu nome desenhado nas ondas desse silêncio. Não era suposto permaneceres aqui, num local que nada tem que ver contigo. Ou serei eu que não pertenço aqui, neste local onde tu já não fazes sentido? A memória tem destas coisas. Faz-nos questionar a vida que levamos e traz-nos à lembrança as pessoas que por vezes nada têm que ver com os momentos em que as evocamos. Talvez sirva apenas para nos fazer ver que nós afinal é que não devíamos ali estar.

(ao escrever memória, enganei-me e escrevi mnemória – até tem a sua piada, o termo – prometo que voltarei a este engano)

Miguel Godinho

O tempo