A metamorfose
A metamorfose geralmente acontece na segunda metade
dos vintes, quando nos apercebemos da absoluta necessidade
de morrer um dia, quando começa a apetecer
a toda a hora gritar que estamos atulhados e que queremos
a inocência de volta porque o silêncio interior
se torna já impossível de suportar e os incidentes antigos
complicados de esconder. De dois tipos as mutações,
qualquer um deles, de ingresso obrigatório: a perda definitiva
da limpidez e a transformação gradual do nosso ser numa coisa
que nunca mais olhará para trás sempre que a vida colocar
de frente a possibilidade de obter mais e mais e mais
e sempre mais, mesmo que para isso se torne necessário
recorrer à navalhada nas costas de alguém;
ou a passagem por um longo período de desnorte mas que
mais tarde poderá dar acesso ao paraíso do nosso ser onde
a toda a hora é possível para sempre ser o que quisermos ser,
e sê-lo despreocupados com o desenrolar da viagem,
extasiados pelos sonhos adolescentes que decidimos recuperar
e viver, conscientes da sua absoluta necessidade, custe o que
custar, doa a quem doer. Há no entanto, um terceiro caminho,
que evita qualquer um dos primeiros: arrematar-se a viagem,
fechando os olhos e dormindo para sempre na quietude
do silêncio eterno, protegidos da violência da memória
e da necessidade de mutações.
Miguel Godinho
Sem comentários:
Enviar um comentário