quarta-feira, abril 09, 2008

As primeiras memórias

Quando nos mudámos para S. Pedro, vínhamos de um despejo repentino da casa onde habitávamos, em S. Luís. Nessa altura tu eras muito nova e tinhas saído de casa muito à pressa porque querias ir viver com o Manel. Devias ter uns dezassete ou dezoito anos mas já sabias muito da vida. Nunca percebi realmente se gostavas mesmo do Manel ou se o que querias mesmo era alguém que te ajudasse a sair daquele ambiente de ruína. Nunca partilharia contigo a minha opinião sobre esse assunto, nem agora, nem nunca.
As primeiras memórias que tenho de ti ainda dizem respeito a acontecimentos passados naquela casa de S. Luís. Eu devia ter provavelmente uns quatro anos. Recordo-me perfeitamente de uma moto que me ofereceste num período em que estive doente. Lembro-me de percorrer os lençóis nela, de viajar incessantemente o dia inteiro montado no seu banco. A moto cabia-me na palma da mão mas acho que foi o veículo mais interessante que tive até hoje. Gostava de poder pegar hoje no meu carro e regressar àqueles lençóis.
Nesse tempo ainda não tínhamos televisão. A única pessoa que possuía um aparelho desses era a vizinha Gertrudes que vivia na outra ponta do quintal e, como era normal naqueles tempos, era para lá que toda a gente se mudava aos sábados para ver já não me recordo que programa.
O meu pai tinha no quintal uma pequena horta cercada onde plantava couves, hortaliças e outros vegetais que de momento não me recordo. Ao fundo do quintal construiu um pombal improvisado com umas madeiras que frequentemente recolhia e era lá que criava rolas e pombos que alimentava com bocados de pão duro. Recentemente fui descobrir fotos nossas desses tempos, do meu pai comigo ao colo, e o certo é que parecíamos os dois muito felizes.
O meu pai tinha um bigode muito grande e forte. Outra das minhas primeiras memórias têm que ver com o seu bigode a rasgar-me a pele quando me beijava e do misto de dor e prazer que sentia. Quase sempre fazia isso depois de estar alcoolizado. Eu sentia claramente o forte odor a bebida e hoje percebo que foi esse vício que condicionou toda uma série de sonhos (incluindo os meus) e que ditou o futuro pouco interessante de algumas pessoas.
Miguel Godinho

Sem comentários: