Ó nosso Algarve do céu azuli
[versão actualizada de um texto antigo]
em homenagem a Jean Pierre Fonseca dos Santos
Antigamente, eram muitas as bocas com fome
mas ainda assim se decoravam casas e carroças e barcos
e o que fosse sem que o aparato precisasse de um Mercedes
estacionado a uma porta de madeira podre, sem que o prato
do almoço se esvaziasse de conteúdo só para que o vizinho soubesse que
- aqui o papá tem um 320 enquanto ele, um simples 220!
Eram tempos em que não faltavam banhos de luz, de um sol
tão ofuscante que queimou passados e fez arder
memórias de dias duros, de miséria, de sangue.
Hoje em dia, já não há barcos nem campos de figueiras
nem alfarrobas nem burros cansados de dorso marreco.
Agora, já só se conhecem marrecos cansados e sujeitos burros.
O algarvio cantante ficou dormente e comprou um barco
que não pesca, nem apanha choco à luz da candeia
nem sai da doca que agora é marina. Mas o barco lá está
à espera da penhora para poder navegar para outras bandas.
Esta é agora a terra do algarvio de segunda geração
e primeiríssimo nível, que partiu para França há vinte anos
e que vem constantemente de vacances com uma ideia para a retraite:
investir numa pastelaria, lá na aldeia, é isso que faz falta.
Traz sempre um casaquinho novo de cabedal,
uma gravatinha verde e bolinhas amarelas
e muitas calças de fato de treino para combinar com a malhinha.
Tudo novo – para que se saiba.
Saltou do anonimato por causa da casinha branca lá no monte
que o avô deixou (à custa do contrabando trazido do lado de lá da fronteira)
e pintada agora de rosinha-choque para dar no olho
Dá que falar na vizinhança pela ligeira transformação da moradia
acrescentou-lhe quatro quartos, duas suites, uma piscininha. E as divisões
têm boas áreas! Os compadres não se cansam:- É um bom vizinho, não faz barulho,
só cá vem uma semana por ano!
Miguel Godinho
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