quarta-feira, abril 25, 2007

De mão dada

um dia descobrimos
nas desordens de hoje
as mentiras que construímos
os pilares em ruptura

um dia espreitamos
pela reixa da memória
e entramos em colapso
uma paranóia que se instala

um dia desobstruímos
o túnel de acesso
aos pretéritos imperfeitos
uma viagem assombrosa

um dia tombamos
nas lembranças inexistentes
como uma que tenho de ti
de mão dada comigo

Miguel Godinho

terça-feira, abril 24, 2007

Em carne viva

Descubro a tua voz
nos destroços das minhas indústrias
nos vícios que me definem
na clemência com que me exibo

retrato emoldurado na memória
- é como se existissem palavras que
só o teu silêncio soubesse dizer,
que só na tua imagem fizessem sentido
sons que se me inscrevem na pele
como se passasses por aqui
em carne viva, para me alentar

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 23, 2007

Lembro-me

Lembro-me
de mim
quando te esquecias
quando estavas demasiado
ocupada para te lembrares
lembrares-te de ti
esquecendo-te
esquecendo-te de mim
esquecendo-te de nós
esquecendo-te que
éramos um só
um


Miguel Godinho

sábado, abril 21, 2007

Os muros

Tal como as pessoas
também os muros caem
essas fiadas de pedras ao alto
que se desmontam
para voltarem a ser o chão
que tapamos de alcatrão

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 16, 2007

A ponte da Sé

Nus nos nossos sítios
era assim que nos sentíamos
sentados serenos sem necessidade
de roupagens nem regras

Rente à linha a ponte da Sé
o cheiro a óleo e a maresia
os barcos e
a constância despreocupada
daqueles crepúsculos tão extensos

agora reparo
a noite já não cai na ria assim
é como se tivéssemos vestido as roupas
outrora desnecessárias

Miguel Godinho

sábado, abril 14, 2007

Os lugares antigos

Vejo sempre caras e nomes
encarcerados
nos recantos perdidos da mente
esses sítios nublados

tombamos sempre nos lugares antigos
nos escombros da memória
essas ruínas que reconstruímos
sempre que por lá passamos

Miguel Godinho

sexta-feira, abril 13, 2007

Os soldados anónimos da vida

Os soldados anónimos da vida
esses que deambulam por entre
um existir incógnito
são a imaculada memória do nada
numa inocente batalha pelo espaço.
Por onde vagueiam sabemos
- esses gélidos sítios de ausência
na bruma da noite invernal

Ainda assim se preocupam
como se alguém se fosse lembrar deles
como se valesse a pena estarem vivos
e merecessem permanecer aqui
junto de quem nunca os chorará
junto de quem os finge não ver

Miguel Godinho

quinta-feira, abril 12, 2007

Do passado o presente se apropria

Do passado o presente se apropria
reivindicando a prescrição do antigo
- esse passado enfarpelado de hoje
coberto com uma jaqueta moderna
uma fatiota ligeiramente recomposta
a camisa por dentro da calça
e um corte de cabelo mais aprumado
num corpo que é sempre o mesmo

para mim o progresso é um embuste
uma imitação, um decalque, um dejá vu
uma visão renovada do que sempre foi
uma passagem pela constância
por onde o tempo vai circulando

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 11, 2007

O passeio das incertezas

Tropeçar nas esquinas do pensamento
e lavar a cara na chuva reminiscente
a face escondida num espectro de luz e
o cheiro na sombra que me embala
escorrego no passeio das incertezas
e embato nos pilares que me sustentam
- os trajectos das ideias são perigosos
as cartografias dos terrenos não existem

e os caminhos conduzem-me sempre ao mesmo destino
uma memória tua

Miguel Godinho
As palavras que dizem muito

Às poucas palavras que dizem muito
digo-lhes que muito as procuro
por entre as muitas palavras
que dizem pouco
da mesma forma que te procuro
por entre as frases por conceber
como se a razão da minha escrita
fosse o desejo do nosso encontro

Miguel Godinho

segunda-feira, abril 09, 2007

As ideias

As ideias
- é aí que se sustentam os entendimentos
uma sucessão de colisões voltaicas

os olhares
são vórtices de absorções
é como nas saunas –
as transpirações desses sentires
nas experiências que me ensopam

voltando às ideias
são sentimentos que se confrontam
em instantes que circulam
à velocidade das naves espaciais
pedaços de energia que voam zum zum
para que [num nanosegundo]
me sinta idiota
quando me penso

Miguel Godinho

domingo, abril 08, 2007

São tantas as vezes

São tantas as vezes que
que nos escoamos
por entre as caleiras da vida

Miguel Godinho

quinta-feira, abril 05, 2007

Os meus olhos nos teus

despeço-me de ti
uma vez mais

é como se a sobremesa dos dias
fossem os nossos desencontros
as nossas distâncias, as renúncias
momentâneas

mas a fateixa que nos ancora
num entrançado de rotinas correntes
continua fixa, como os meus olhos
nos teus

Miguel Godinho

terça-feira, abril 03, 2007

E se

E se me sentisses
apenas nos gestos
no toque que te completava
nos braços que te abarcavam

e se soubesses
que isso nunca mais
voltaria a acontecer

apenas nos gestos
no toque que te completava
nos braços que te abarcavam
nunca mais
voltaríamos a acontecer

Miguel Godinho