terça-feira, janeiro 27, 2009

O passo seguinte


Chegava quase sempre esgotado a casa. Mais um dia a tentar desesperadamente ser alguém. Uma luta diária, uma preocupação aflitiva, uma necessária realização pessoal, o sonho dos papás que lhe diziam que as Economias dariam boas saídas, bom dinheiro e uma progressão certa na carreira. O dinheiro é uma coisa que nunca há-de acabar e é imprescindível que aprendas a lidar com o teu e, mais importante que tudo, com o dos outros. Parece que após tantos anos ainda aquelas palavras lhe ecoavam nos ouvidos.
Dizia a todos que estava contente porque tinha um emprego legítimo, nestes dias que correm, é bom que se aproveite o que se tem pois isto está tudo menos fácil, embora no seu íntimo por vezes achasse esse combate diário uma completa inutilidade. Sabia que nada daquilo o poderia tornar uma pessoa melhor, no dia seguinte era como começar do zero, a angústia, a ansiedade, a raiva por ter de se aturar no mesmo palco, por ter de se representar no mesmo circo, com as mesmas feras, famintas por devorá-lo.
Olá muito bom dia Sr. Doutor, como está? A acta da reunião já está pronta; já despachou a documentação que lhe deixei ontem em cima da secretária? Sim, às quatro terei o relatório de contas terminado. Claro que as receitas têm de aumentar. Números, eu sei, são precisos números mais interessantes. Tenho feito horas nesse sentido. Tenho feito horas nesse sentido. Tenho feito muitas horas nesse sentido. Nesse sentido são horas a mais. Muitas horas a mais. Hora feitas por mim, não por si, que não sabe mais do que lamentar-se a toda a hora. Cale-se e não me chateie mais, que vontade de lhe gritar bem alto para não me chatear mais!
Não passava disto. A mesma linguagem de código, o mesmo discurso trôpego, a mesma sensação de ausência, um trabalho vazio, uma vontade de mandar tudo aquilo aos arames, uma vida sem vida. Mas será que haveria alguém com uma vida mais interessante que a dele? Às tantas estava tudo assim, a viver a sua vidinha, a engolir em seco a pretexto de uns euritos que dessem para pagar os créditos, porque a vida se calhar não passa mesmo disso. A minha vida não é diferente da vida dos outros. Eu sei que não há ninguém totalmente satisfeito e realizado, não pode haver. Ninguém é feliz porque eu também não sou. E de facto, aos olhos dele, o contentamento absoluto não era mais que uma completa utopia.
Havia dias em que acordava mais fresco e, absorto ainda no sono, esquecia a miséria que é não ser capaz de largar tudo e começar tudo outra vez ou talvez nem começar nada. Largar só. Deixar, abandonar uma vida que nem sequer vida é. O Sr. Doutor quer números, eu dou-lhe números: que tal um zero? Não serve? Então e dois? Também não? E três, que é a conta que Deus fez? O discurso, esse já estava ensaiado, mas faltava-lhe o passo seguinte, o mais importante. E a febre às vezes tão alta, e os suores como rios a galgarem-lhe o pescoço sempre que acordava para se ver ao espelho: quem sou eu? Que palco é este onde actuo? Para quê este disfarce neste mundo aberrante onde cada um tem de tentar sempre ter mais só para se poder dizer melhor que o próximo? No entanto, à parte disso, sabia que o despertador voltaria sempre a soar à mesma hora e que o fulgor de todos os dias voltaria de alguma forma a revelar-se subtilmente na violência desse toque que gritava alto sempre que eram horas de levantar para um novo assalto no combate pela vida. E que o facto de nunca se cansar de tentar encarar sempre a fadiga dos dias com um sorriso pensativo mas ilimitado, era como se soubesse que as horas que passam algum dia lhe consagrariam a claridade de um possível encontro consigo próprio. Quando isso viesse a acontecer, saberia com certeza já ter dado o passo seguinte.

[Publicado no Jornal do Baixo Guadiana]

Miguel Godinho

quarta-feira, janeiro 21, 2009

Os nossos dias (25)

Estes dias devolvem-te em ricochete
o silêncio das ilusões
adulteradas por todas as horas
em que foste vivendo na cegueira
sem que te apercebesses da velhice

neste lugar de reencontro
olhas a vida antevendo a morte
e decides extraviar-te de tudo
sabendo que o vento nunca te
trará a adolescência de volta
e que uma loucura te atingirá
com a violência que quiser
já que a verdade só a sabes
na certeza de um fim


Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 13, 2009

Os nossos dias [24]

acordar amanhã
como se fosse a primeira vez
o que gostavas verdadeiramente era de viver
foragido da brutalidade dos dias
e que te deixassem existir errante
querias apenas a paz da tua insipiência
nunca te interessaram outras matérias
a verdade é que nem tampouco queres saber
juras que não sabes e é a mais pura da verdade
perguntam-te quem és e não tens resposta
já tiveste mas já não queres ter
olhas em redor e não te encaixas
não consegues pertencer a parte alguma
só atmosferas que não convencem
e uma sucessão de coisa nenhuma

Miguel Godinho