terça-feira, abril 23, 2013

o que nos vem à cabeça


ideias brancas, ideias ainda cheias de nada, a folha a levar com a matéria bruta, o produto cru, a palavra primeira, o acto de pensar, algo que acontece primordialmente na cabeça, podia despejar toneladas de tudo aqui para cima mas não sei o que se sucederia depois, se resultaria, se se extrairia alguma coisa desse acto, se não seria apenas uma conduta de desespero, com certeza que sim, uma atitude irreflectida, um movimento imponderado, afinal nenhum texto se escreve sozinho, um livro precisa sempre de alguém que lhe ordene as ideias, as palavras, alguém que ponha ordem no que se quer dizer, ou talvez não, talvez redigir também possa ser apenas um debitar do que nos vêm à cabeça, escrever é pensar, afinal, ou não é, às vezes penso que escrever pode ser somente isto mesmo, uma desarrumação, um alvoroço, uma coisa em construção, algo que vai acontecendo à medida que vai acontecendo, isto que para aqui se está passar
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MG 2013

sexta-feira, abril 19, 2013

não basta mudar as moscas




não basta mudar as moscas, temos de remover a merda, era o que gritava o cartaz de um popular, funcionário público, aplicado no seu trabalho, descontente com o facto do governo trocar apenas o trinco que servia a frente de ataque e, deixando tudo como estava, mais uma vez decidiu mudar as regras ao jogo, corrompendo o jogo, contornando as decisões das mais altas instâncias que o condenaram pelo insucesso das suas políticas, decidindo assim reter, para lá do que já ficou para trás, mais cinco meses de subsídio de férias ou de natal, já nem se sabe, e que era seu por natureza, do seu trabalho, de um acordo entre as partes, sem pagar juros por isso, como se de um empréstimo forçado dos trabalhadores e pensionistas ao estado se tratasse, o funcionário a dizer, ora tomem lá meus amigos, andamos todos à rasquinha de dinheiros mas não faz mal, mal conseguimos que o ordenado chegue para as contas mas não há problema, ora tomem lá meus amigos, logo nos pagam quando puderem, não basta mudar as moscas, temos de remover a merda, era o que gritava o cartaz e a inquietação de um popular

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MG 2013

não queiras, não queiras


não queiras ficar doente, terás um azar terrível, sofrerás um revés conjecturável, ninguém correrá em teu auxilio, quando pensares que te irão salvar ninguém estará lá para te salvar, ninguém te irá amparar, ninguém te poderá livrar do mal, a máquina não terá disponibilidade para te ajudar, quem és tu para pensares que te poderiam salvar, que te iriam salvar, quem te mandou adoecer, ninguém te irá socorrer, não mereces que te socorram, não descontaste o suficiente para mereceres uma protecção, um salvamento, isso aqui já não se usa, não se usa porque não pagaste, porque não contribuíste, quem te diz a ti que contribuíste, o sistema não se lembra, ninguém se lembra, não há registo, não temos registo de ti, tu não existes, não mereces existir, não alimentaste o sistema como queriam que o alimentasses, onde é que pensas que vais, assim doente, não queremos aqui doentes, isto aqui não é para doentes, isto aqui não é para ti, querias uma caminha quentinha, aqui não há caminhas quentinhas, não temos nada para te oferecer, aqui não temos nada para ti, se estás doente e a precisar, não estivesses, quem te julgas para enfermar, a doença aqui não tem lugar, tu aqui não tens lugar
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MG 2013

quinta-feira, abril 18, 2013

não lhe venham agora dizer


só lhes ficava bem admitirem a manifesta incompetência, lia-se isso na cara da dona maria, era por demais óbvia aquela expressão deprimida, uma simples expressão, um olhar humilde de derrota, de desgraça, coitada, cinquenta anos e sem dinheiro para alimentar os filhos, agora, depois de uma vida inteira de trabalho duro, que forte aquele olhar, um olhar capaz de nos fazer experimentar os calos que transportava nas mãos, as lágrimas que lhe caem dos olhos todas as noites, a preocupação por não estar a ser capaz de aguentar a dura realidade, se esta gente ao menos fosse capaz de reconhecer os erros sucessivos, a porcaria que têm vindo – todos –  a fazer, um olhar que desejava que fossem homens o suficiente para admitir que talvez não fosse má ideia irem pregar para outra paróquia, para um lugar distante deste em que ela se encontra, em que se encontram as pessoas que todos os dias têm de sofrer com os erros desta gente, erros cada vez mais evidentes, desta corja, deste bando de abutres que teimam em sugar o pouco ou nada que ainda resta, eles e o resto da equipa que serve interesses externos, interesses maiores, muito maiores do que todos aqueles que como ela agora não sabem o que fazer da vida, não sabem o que fazer da vida, não é a dona maria a culpada desta merda, não são as donas marias as culpadas desta merda, porquê que tem de ser elas a pagar a factura, porquê que têm de ser elas a pagar a factura, não lhe venham agora dizer que não há verdadeiros culpados nesta história, não lhe venham agora dizer
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MG 2013

quarta-feira, abril 17, 2013

mundo de agora


ia escrever que coisas pouco interessantes se passam fora dos livros, mas a verdade é que tudo se passa fora dos livros, a vida acontece é fora dos livros e a realidade supera em muito a ficção, só de livros não podemos viver nós, os livros contam coisas interessantes mas dos livros já ninguém extrai nada, é por demais óbvio, cada vez mais óbvio, parece até que já ninguém lê, que já ninguém quer ler, ninguém quer aprender, os personagens deste mundo real andam todos em silêncio, prostrados, o palco da vida mais que pede acção, solicita um enredo credível, vozes que se ouçam, vozes que se façam ouvir, alguém que acorde o mundo e os seus actores que isto anda tudo diminuído, alguém que chore em cena, que grite em desespero, alguém que seja qualquer coisa, que seja ele próprio, que seja capaz de ser ele próprio, alguém que ame, que saiba amar, que queira amar, alguém que rasgue as páginas dos livros, mais que não seja, alguém que pegue numa caneta e escreva um poema, por muito mau que seja será sempre um poema, alguém que que se desalinhe que isto de alinhamentos estamos todos fartos, fartos do tédio, onde é que anda o amor, os valores, essa coisa que em tempos se chamou de humanidade, a generosidade, o próximo, a preocupação com o próximo, a preocupação, a simples preocupação, e já que se fala disso, todos temos direito à vida, a uma vida, a uma vida digna, o raio que os parta se isto assim é que é o caminho, o caminho é outra coisa, é sermos capazes de dizer basta, basta de estarmos rendidos, já basta o que basta, porra, é triste mas por algum motivo vou sempre bater aqui: estarei cansado disto tudo, não, não estou, quero é outra coisa, quero é outra coisa melhor, um mundo melhor que este de agora, se não fossem os livros, a família e os amigos, não sei como me aguentaria neste mundo de agora
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MG 2013

segunda-feira, abril 15, 2013

pequenos por natureza


não é erro de grafia, é só que nos últimos tempos tem-me apetecido escrever apenas com minúsculas, não porque queira demonstrar a minha singularidade intelectual ou, pelo contrário, de uma forma alegórica, revelar a minha modéstia, mas porque acho que pode existir uma certa sublimidade no poder de um texto encolhido, um texto que não exalte certas partes das palavras, as primeiras letras, ou as letras primeiras, porque considero que não existem letras que mereçam ser maiores que outras, um pouco como nós próprios, não há uns mais que os outros, é certo que existem líderes, dirigentes e subordinados, mas a verdade é que quem se pinta de grande tantas vezes acaba por ser muito mais pequeno do que os pequenos que são já assim por natureza, quem se amplifica ou é amplificado, tantas vezes, sem se aperceber, mais não faz do que reduzir-se, e, no fim de contas, o mundo das palavras é o mundo das pessoas, e as pessoas, sendo todas iguais, são todas diferentes, não precisam de se fazerem ou que as façam grandes para serem vistas.
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MG 2013

sexta-feira, abril 12, 2013

Repetição


A falta de mulher é uma coisa do caraças, e o que, e o que, e o que, e o que, e o que – que gaguez fodida, fodida-da-da, que lhe entrava, especialmente quando alguma coisa o punha nervoso – e o que ele queria mesmo era passar-lhe a mão pelo pêlo, àquela vizinha que costumava despir-se todos os dias, sempre à mesma hora, no prédio em frente, queria jogar-lhe a manápula à penugem, àquele botãozinho ardente, arrimar-se a ela, roçar-se feito bichano, esfregar-se naquele corpinho de cetim, que tesão aquele corpinho de cetim, aquela menina tão jasmim, mas não sabia como, sempre que abria a boca punha-se a repetir as coisas que nem um disco riscado, repetir que nem um disco riscado, repetir que nem um disco riscado, tão intelectual e com este defeito na linguagem-gem, para além de nunca ter sequer alguma vez beijado alguém, tirando aquela vez em que uma prima mais afoita, numa tarde de verão de há muito, lhe saltou para cima, louca para experimentar a carne, e ele, sem saber o que fazer, nervoso que nem um pau, quase morria do coração, enquanto aquela vadia lhe mexia por entre as pernas e o devorava, abocanhando-lhe todas as partes escondidas para ver se o provocava, se lhe roubava algum acanhamento, se o transformava num homem, se o punha a falar direito. E que desvario, aquele, o rapaz não merecia estar a sucumbir de vontade, ai minha santíssima, aquela mulher tinha logo que morar ali em frente, e de ser uma loucura, e de o pôr demente de desejo, e de se despir sempre àquela hora, na precisa hora em que ele também ali estava, todos os dias, no prédio em frente, com o membro do meio de fora, cinco dedos a esfregarem a coisa, a repetir desvairadamente não o que não lhe conseguia dizer mas uma manobra de afagamento, a mão direita para a frente e para trás, para a frente e para trás, para a frente e para trás, antes que ela se metesse para dentro e se escondesse outra vez.
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MG 2013

segunda-feira, abril 08, 2013

Aprender

O que eu queria mesmo era aprender. Aprender o que fosse possível aprender, absorver tudo o que me rodeava, incorporar conhecimento, saber o porquê das coisas, talvez um dia tudo aquilo que já soubesse de antemão, por muito pouco que fosse, me pudesse vir a ser útil, actuar a meu favor. Já estudar, só mais tarde lhe ganhei o gosto, quando percebi que de outra forma seria muito difícil, impossível, custoso que nem o raio, perceber certas coisas que a vida do dia-a-dia não oferece, não explica, não justifica, ou então sou eu que não percebo, não chego lá, não compreendo, não falo a mesma língua. Cedo descobri que era preciso ler, ler muito, ler muito mesmo, ler tudo o que conseguisse, meter-me dentro dos livros, jogar-me de cabeça, deixar-me cair lá para dentro, não só porque lendo com certeza outros mundos me seriam apresentados, e eu gostava muito de ter a oportunidade de conhecer outros mundos, todos aqueles que fosse possível conhecer, de preferência de borla, sem gastar o dinheiro que não tinha, nem tenho ainda, mundos diferentes do meu, porque o meu tantas vezes era uma chatice, mas porque percebi que esses mundos seriam muito mais interessantes do que aqueles que todos os dias temos de aturar, os mundos desinteressantes das pessoas óbvias, das pessoas fúteis, das pessoas que nos aparecem à frente, que temos de aturar, o nosso mundo, afinal, o mundo das pessoas que se querem meter no nosso caminho, bem sei que há umas que acabamos por perceber que ainda bem que se meteram à nossa frente, acabamos sempre por ter surpresas, e no que toca a pessoas, tantas vezes nos enganamos, para bem e para o mal, mas eu sei, o caminho é de todos, o caminho faz-se caminhando e se caminhamos todos juntos, não há outra hipótese, aliás, temos mesmo de caminhar todos juntos, é um risco que temos de correr. Mas o meu caminho é o meu caminho, que me desculpem essas pessoas que não interessam, eu tenho a certeza que nada tenho que ver com eles, com essa gente que só empata, com essa gente que não se preocupa, que não quer saber, que se está nas tintas, que acha que não tem mais nada para aprender, que já aprendeu tudo, que tudo sabe sobre tudo, saber tudo ninguém sabe, coitado daquele que julga saber tudo, já pouco consegue aprender para lá do pouco que já aprendeu.
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MG 2013

sexta-feira, abril 05, 2013

Oh as casas as casas as casas


Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

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Ruy Belo

terça-feira, abril 02, 2013

Doze anos


Faz agora doze anos que te conheci. E só sei dizer que o amor não é fácil de compreender, fácil de explicar, o teu amor, o meu amor, o amor que tenho por ti, sei lá como explicar isto, o nosso amor, esta coisa que nos impede de perdermos o norte neste percurso que fazemos todos os dias, há tanto tempo. Ainda por cima a mensagem que queremos que seja uma mensagem fácil de ser entendida costuma vir sempre como que codificada – é assim com todos, não é?, nunca nos percebemos a cem por cento um ao outro, às vezes nem a cinquenta, até parece que falamos línguas diferentes, nunca tenho a certeza plena que te amo como querias que te amasse, nem que tu me amas como eu queria que tu me amasses, mas no fundo eu sei que sim, quer dizer, eu acho que sim, e a verdade é que nunca nos sentimos confortáveis em afirmar que tudo isto é verdade, o nosso amor não aconteceu à primeira vista, como se costuma dizer, nunca acontece, pois não?, embora eu ache que não esteve longe disso, acho que foi antes um clarão que nos deixou imóveis, estáticos, deslumbrados, um arrebatamento que não sabemos como explicar, se calhar até talvez tenha sido como normalmente acontece, só sei que ficámos apavorados por não sabermos lidar com a situação, putos inseguros, adolescentes meia-leca que reagem com o peito e não com a razão, e agora, que fazer quando te chateias comigo e dizes que só te apetece é fugir de mim, largar-me, dizes-me que eu não sirvo, que sou muito insensível, um tremendo fogo de vista? A gente só precisa de alguém que acredite em nós, a gente só precisa de acreditarmos em nós próprios, de acreditarmos um no outro, de alguém que nos acompanhe ao fim do mundo se for preciso, que vá connosco a todo o lado, que caia connosco no abismo se tiver que cair, e que nos ampare quando estivermos quase a chegar, quase a bater no fundo, e que lá bem no fundo nos coloque uma almofada por baixo, que nos agarre no braço, que nos diga julgas que já é hora de partires?, não ainda não é, não, não te preocupes que eu estou aqui contigo, não te deixo ir. É disso que precisamos: de sentirmos que temos ali alguém do nosso lado, alguém verdadeiro, um aliado, um parceiro, um cúmplice nas asneiras que a toda a hora cometemos, eu preciso de ti e tu de mim, e é por isso que eu sei que te amo, e é por isso que eu sei que me amas, é por isso que eu sei que ainda me aturas, doze anos depois e já com um filho, um filho lindo, um mundo novo, porque ainda que às vezes digas que já não me queres, que já não gostas de mim, que já estás cansada disto tudo, eu sei que não é verdade, eu sei porque também digo essas coisas, toda a gente diz, essas asneiras, se queres que te diga, eu estou mas é cansado de nunca me cansar de ti. E eu sei que tu também. Eu sei que tu também.
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MG 2013

Qualquer coisa diferente, qualquer coisa melhor

Jornal do Baixo Guadiana // Abril 2013