Por mais que gostes de poesia, caso vivas num apartamento só poderás ler até três poemas por dia. No entanto, este limite pode ser aumentado para seis, mediante aprovação do poeta e/ou do delegado de saúde mental. Para tal, deverás requisitar uma autorização. O limite do número de poemas pode sempre ser inferior ao mencionado acima, consoante o valor do livro em questão.
Os mais sensíveis podem ler até seis poemas, podendo tal número ser excedido se a dimensão psicológica o permitir e desde que as condições psíquicas estejam asseguradas.
Sempre que sejam respeitadas as condições de salubridade e tranquilidade de uma determinada biblioteca, podem ser alojados, por cada apartamento, tanto nas zonas urbanas como nas rurais, até três poemas ou quatro textos em prosa poética, não podendo no total ser excedido o número de quatro poesias.
Um dos grandes problemas que afecta os poemas e as pessoas que os lêem é o barulho. Se o poema for deixado sozinho durante longos períodos de tempo ou se não for lido suficientemente bem, é possível que vá adquirir maus hábitos comportamentais, como um ladrar compulsivo. Enquanto leitor, é da tua responsabilidade garantir o bem-estar do poema e não interferir no bem-estar dos outros leitores, quer vivas num apartamento ou mesmo numa quinta.
Embora a maioria dos leitores não seja confrontado com este problema, pois o poema lê-se e sente-se no momento, quando está próximo do leitor ele não exibe tal comportamento, sendo a situação de ruído constante um sinal de desequilíbrio do poema e podendo este levar os leitores à beira de um ataque de nervos.
Para que saibas, qualquer leitor incomodado nunca poderá contactar o poeta. Se o pudesse fazer, este iria dizer-lhe para ter juízo, visto que o poema nunca pode cessar o ruído. Caso tentes fazê-lo, este pode aplicar-te uma coima. As coimas começam nos 500 euros.
Resumindo:
Agora que já sabes o que diz a lei, procura agir de maneira responsável, evitando dar motivo para que se verifiquem reclamações. Não te esqueças: os poemas têm direitos e os leitores têm deveres e responsabilidades.
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mg 2013
quarta-feira, outubro 30, 2013
sexta-feira, outubro 04, 2013
ninguém está escondido dentro de mim
e quantas pessoas trago eu dentro de mim, quantos amigos, quanto
amor, muito amor, ninguém está escondido dentro de mim, ninguém está oculto, ninguém
vale pouco, toda a gente vale uma fortuna, estou milionário de pessoas, o
discurso de gratidão não tem fim, é complexo demais para ser traduzido em palavras, sinto-me apinhado de bons sujeitos, repleto de boas famílias, levarei
muita gente comigo quando tudo isto terminar, muitas memórias, muitas mãos que
me agarraram e que não me deixaram cair, que não permitiram que caísse para dentro da melancolia
do mundo, para dentro da melancolia do eu, ainda que muitas vezes me sinta sozinho, ainda que nunca exista da forma
que gostaria de existir, e será que existo mesmo, será que existo, será que me perdoam,
será que se incomodam por achar que poucas certezas tenho para além desta, que
nada sei, eu que às vezes julgo saber tudo, eu que tantas vezes até queria ser
outro, eu que às vezes preciso tanto de ser visto, eu que nunca quis
ser óbvio, eu que quero tanto, mas que no fundo preciso de tão pouco
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mg 2013
quinta-feira, outubro 03, 2013
xixi, caminha
ora aqui fica
mais um poema do zé joão:
«verdade seja dita, porra.
isto a vida é mesmo assim.
um dia acordamos, criamos um filho,
outro, outro, e depois mais um.
damos por nós cheios de cabelo branco,
a barriga inchou, a coisa já não levanta.
e pronto, a seguir
xixi, caminha.»
terça-feira, outubro 01, 2013
essas gravatas não vos acrescentam valor
um dia serás capaz de borrar o plano traçado, de inverter o rumo da tua vida e dizer que o mundo não
deve ser aquilo que tu não queres que o mundo seja, serás capaz de assumir que a brancura
e as pessoas brancas não existem, que o conforto em que vives é ilusório, que
tu nunca estiveste verdadeiramente confortável, bem sentado ou raio que te
parta, porque de sofás desfundados está o teu mundo cheio, de candura, dessa
gente bem lavada e asseadinha, gente que gosta muito de espreitar para dentro
de si própria e só sentir o cheiro a rosas quando o que lá existe é apenas
lixo, e então talvez te sintas na disposição de dizer: pronto, é hoje que vou
ser audaz, é hoje que vou ser aquilo que me apetece ser, já chega de submissão,
de mentira - e quantas vezes não há mentira por detrás das tuas ilusões, o
livro da tua vida não se pode escrever com palavras ininteligíveis e personagens
em quem não confias: basta que tu não és mais capaz de viver assim, rodeado de
todas essas coisas ocas e pessoas óbvias, tu queres mais é que se dane a
perfeição, tu já estás farto dessa gente que só sabe é ver-se ao espelho e
besuntar-se de brilhantina e vamos ver se não te levantas um dia azedo e com a
coragem suficiente para confrontá-los com a verdade: vocês não valem nada, nem
para lavar o chão prestam, essas gravatas não vos acrescentam qualquer valor
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mg 2013
segunda-feira, setembro 30, 2013
uma mãe com ar de casa
uma mãe com ar de casa, um edifício de habitação que lentamente
se vai arruinando e tão depressa se transformará em escombros; o que nos conforta
é a perfeita consciência de que haverá sempre uma beleza fértil, um legado, uma
paisagem afectiva que se produz, nos pormenores, nos pequenos gestos, a atenção
que ela nos foi prestando durante anos, a singularidade sentimental da herança que
se preocupou em construir, a magia edificante que sempre brotará das suas mãos,
da sua alma, dessa coisa que em si produzia amor, o brilho que emana da sua arquitectura
emocional; e não há palavras capazes de explicar, tudo em si é representativo
daquilo que nos dá, que nos deu, do que ela é, do que ela foi, do que sempre
será; e pensamos muito no que aconteceria se de repente um infortúnio
qualquer no-la roubasse, sabendo que à medida que vamos crescendo isso virá a acontecer; e porque ela nos faz muita falta, e toda a gente a quer muito, ninguém
sabe, ninguém está nunca preparado, ninguém consegue sequer imaginar a sua ausência, como se ela fosse uma espécie de campo magnético, um valor central, um incêndio, as
coisas mais antigas de que nos lembramos têm todas a sua marca, ela está lá
sempre, o seu sorriso, os seus olhos, a sua luz, e não nos sai da cabeça a
hipótese da sua extinção, o simples reconhecimento de que ela findará, de que ela terminará - tudo terminará, quando menos se espera já se acabou
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mg 2013
sexta-feira, setembro 27, 2013
desta vez o raio que os parta
dizia-me hoje o zé joão, mais ou menos assim, na sua última acção de campanha pela abstenção: «o território dos políticos é lixado. ou isso ou as
pessoas são estúpidas. de certeza que toda a gente vai repetir a mesma asneira:
acreditam em tudo aquilo que lhes prometem, por amor de deus, aceitar o embuste…
eu, nem sequer vou lá pôr a cruz e depois quero ver como é. a merda agarrada
aos sapatos, isso limpa-se, agora pôr lá um bandalho quatro anos que promete mundos
e fundos... eu cá vou votar bem, mas vou votar bem mesmo: vou votar no raio que
os parta a todos. esta vai ser a minha forma de continuar a ter forças, de me manter
vivo, e são, e capaz de me olhar ao espelho e ver um sentido nisto tudo. acreditem
que sim. cada vez mais sou incapaz de aguentar a intrujice, foram desleais para
mim, para todos, às vezes até parece que fomos ludibriados por crueldade, ou
por prazer. aqueles filhos da puta. todos. precisávamos de tão pouco e tudo deitámos
a perder autorizando aqueles pulhas a agarrar o poder. desta vez não me enganam. desta vez, o raio que os parta»
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mg 2013
quinta-feira, setembro 26, 2013
perder o chão dá-nos a certeza
confirmo-te que sim,
que continuaremos sempre a fazer coisas absolutamente erradas, coisas que poderão vir a correr mal, até porque se correrem mal é porque nunca poderiam ter corrido bem,
podemos sempre julgar que aprendemos com isso, quando na verdade nunca
aprendemos nada e voltamos sempre a repetir tudo uma e outra vez: as mesmas
asneiras, os disparates de sempre; seremos sempre jovens inconscientes e
instáveis, felizes na imprudência e no descuido, e é tão bom precipitarmo-nos
de uma escarpa, como se fossemos mesmo a tombar, sentirmos aquele frio na
barriga de quase perdermos o chão, porque sentir que se está mesmo a perder o
chão dá-nos a certeza de que a sorte não nos pertence, que não somos de modo
algum senhores do nosso destino; e tudo faremos para não vivermos só de dias
óbvios e calculáveis, teremos filhos teimosos que darão continuidade às nossas
vidas de indefinição, e que nos trarão com certeza muitas dores de cabeça,
partirão coisas e serão muito rebeldes, porque a rebeldia é sinónimo de
liberdade; e seremos felizes na indeterminação, porque de indeterminação é feita a
vida, de imprevisibilidade, de encostas abruptas, de dúvidas, do resultado dos descuidos e dos desacertos, se não que interesse teria o mundo se nos joelhos não
transportássemos todos os rasgões das nossas quedas
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mg 2013
quarta-feira, setembro 18, 2013
a verdade que nos vendem
sempre tive um prazer enorme em expor o engano que se esconde por trás de uma grande certeza e a verdade é que nunca quis ser um homem de fato e gravata, um desses senhores graves, cansados do trabalho, cheios de soluções para tudo, com uma vontade imensa de mandar no mundo. sempre vi por detrás disso uma frustração, o descontentamento de filhos que toda a vida ansiaram por um pouco de atenção, por um simples «gosto muito de ti», uma mulher que nunca ouviu nem ouvirá um “és tudo para mim”. sempre gostei dos dias de chuva no verão, mas agora, cada vez mais, parece que a única coisa que me interessa é a clandestinidade, insurgir-me perante a verdade que nos querem vender a toda a hora e sonho muito com o dia em que, de espada em riste, feito guerreiro medieval, obrigarei pessoas que não querem saber de ninguém a trabalhar para nós, da mesma forma que agora trabalhamos para eles, porque se há coisas que odeio são conjecturas, a economia dos números, os ajustamentos e as necessidades de requalificação: o que é preciso é flexibilizar-lhes a alma, ensinar-lhes que só o amor e a felicidade é que contam, e que há um caminho alternativo à democracia da subordinação
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mg 2013
terça-feira, setembro 17, 2013
há qualquer coisa
já sabias que mais cedo ou mais
tarde haveria de escrever um texto meloso como este; porque constantemente
fazes questão de me lembrar que todos os dias devemos empenhar-nos na
construção de um mundo só nosso - não de uma casa, não de uma conta bancária, não
de uma mentira, mas de um mundo - um mundo inteiro cheio de coisas imensas,
cheio de amor, cheio de tudo aquilo que conseguirmos meter lá dentro, cheio de
vida; porque daqui a uns anos vamos com certeza ser capazes de nos comover com
esta história; porque esta é a história que vamos querer contar aos nossos
filhos (e que vamos querer que eles se encarreguem depois de contar às gerações
futuras), esta é a história que nos emociona sempre que pensamos na grande
probabilidade da mesma se vir a realizar, e nos faz chorar – mesmo quando não
há nada para chorar – ao imaginarmos a remota hipótese dela não se vir a
concretizar; porque a verdade é que todos os dias devemos ser capazes de chorar
por tudo e por nada – saber chorar é uma qualidade, tentarmos ser felizes
porque o que importa é sermos felizes – saber ser feliz também dá trabalho – e
aceitarmos o que a vida nos dá e desejarmos sempre mais e mais felicidade,
agarrarmos a vida pela mão, deixarmo-nos conduzir por ela, não permitimos que
nada nos escape: esta é a nossa vida e não há-de haver outra; um dia saberemos
reconhecer a importância de tudo isto quando olharmos para trás e nos revirmos:
se ainda agora podemos constatar que o amor não encolheu, é porque há qualquer
coisa de mágico e de imortal nesta nossa simples pretensão, há qualquer coisa
de mágico em nós
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mg 2013
quinta-feira, setembro 12, 2013
os dias lácteos
já foram claros, os dias, lácteos,
irreflectidos, já houve um tempo em que era fácil compreender a luminosidade
das horas, em que todos os minutos podiam trazer coisas novas. tudo isso
naturalmente terminou: a ideia de que nunca as rotinas haveriam de ter lugar, de
que nada se extinguiria, que o primeiro amor seria para a vida, mas porque é
que o primeiro amor nunca é para a vida, como é que as certezas se tornaram tão
frágeis, como é que a realidade passou a reflectir apenas a ausência, a falta
de qualquer coisa – há sempre qualquer coisa que falta – onde é que anda agora
aquela claridade que em tempos existiu, porque é que agora constantemente
sentimos que já não somos os mesmos (quando nós nunca fomos sempre os mesmos),
que nós já não somos aquela pessoa (se nós nunca fomos sempre aquela pessoa),
como é que o silêncio agora está tão presente, o aflitivo ruído do silêncio, a
insuficiência dos afectos, as frases sempre entre-cortadas, as meias-verdades
que inundam o vazio dos espaços, a incapacidade em gerir as palavras, como é
que se gere as palavras?, a certeza de que tudo tende para um fim, a
consciência de que nada regressa ao mesmo lugar, que o amor é um conceito
propenso ao desastre, que tudo há-de ser efémero, que a vida é uma transição, e
eu sei lá o que é a vida: o que é mesmo a vida?, o que é mesmo a vida que eu
cada vez percebo menos e nunca ninguém me chegou realmente a explicar?
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mg 2013
quarta-feira, setembro 04, 2013
está tudo igual
está tudo igual, sabemos perfeitamente que o futuro ainda não começou nem começará brevemente, que o amanhã custará a chegar, aquele dia em que seremos felizes, centralmente felizes, diversamente felizes, imensamente felizes; tudo persiste nestes minutos que passam, o eixo das horas rola justamente sobre nós, em cima de nós - está tudo igual - nada se alterou, tudo nos oprime, esta realidade densa, indisciplinada, a inevitabilidade do mundo, as coisas modernas que só servem para nos iludir, já não há questões fundamentais, tudo é secundário, os procedimentos urbanos, o poder económico a mandar em ti: faz isto, compra isto, olha para isto, desliga-te daquilo, vai para aqui, vai para ali; a desconsideração pela história e pela cultura, a irrelevância – tudo é irrelevante, as verdades que conhecíamos, os nossos – quem são os nossos agora?, tudo partiu ou está para partir: somos voláteis e não dialogamos mais, isso não traz felicidade, isso não dá dinheiro, isso não conta mais, o que importa é descontarmos, darmos o desconto, ignorarmos e sermos ignorantes, ignorarmos e sermos ignorantes
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mg 2013
segunda-feira, setembro 02, 2013
artigo 53
Quer-me parecer que o artigo 53 da Constituição está sob fogo, esse malandro, é a razão de todos os males. Diz o mesmo que "é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos". Um corte orçamental tem de facto força suficiente para acabar com a segurança no emprego porque, se não há dinheiro para pagar salários, não pode haver segurança no emprego. Contudo, também pode ser considerado um motivo que advém de uma decisão política porque, enquanto acto político, o corte orçamental é decidido por uma administração – o Governo, mas com base em indicações fornecidas pelos serviços. Como tal, permitindo que os cortes de pessoal na função pública se processem por razões de racionalidade económica, deixa que te vejam como inconveniente numa câmara ou num instituto, deixa; deixa que te vejam como incómodo num departamento, deixa. Se numa empresa tens de alinhar na política da empresa e não há problema de maior, porque a política da empresa é a política do lucro (à partida, ninguém que dê lucro à empresa será dispensado, independentemente da sua cor política, das suas motivações ideológicas; até porque numa empresa saudável, as questões colocadas pelos funcionários são, no mínimo, avaliadas), no Estado, qualquer coisa que não seja a política de quem manda, é uma má política. E uma má política é sempre uma má política. Imaginem-nos a todos bem alinhadinhos nas boas políticas de quem manda: que bom que seria, que bem que funcionaria tudo isto
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mg 2013
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mg 2013
quinta-feira, agosto 29, 2013
nunca nada alguma vez
o ideal era um dia sermos capazes de inverter o processo: começarmos primeiro pela memória amarga, percorrermos então o desgosto amoroso, a escoriação, depois, aí sim: apaixonarmo-nos perdidamente, reservarmos aquela luz que nos cegou num primeiro instante para o último momento e de repente virarmos a cara e nem sequer percebermos que nunca nada alguma vez nos aconteceu - nada: desconhecermo-nos absoluta e completamente
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mg 2013
quarta-feira, agosto 28, 2013
um dedo médio
e talvez em descobrindo aquilo que te põe realmente radiante, te devas deixar consumir por isso, deixa que isso te mate, deixa-te morrer assim, bem devagar, devagarinho, e com certeza morrerás mais feliz se esticares um dedo médio bem esticadinho, com a palma da mão encolhida e virada para cima, sempre que sintas que te querem mal, que te desejam mal, que sintas que te estão a menosprezar
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mg 2013
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mg 2013
quarta-feira, agosto 21, 2013
o coveiro está à coca
Luiz Pacheco // GEORGE, João Pedro (2011) - "Puta que os pariu! A biografia de Luis Pacheco", Tinta da China, Lisboa.
isto que eu tenho agora
então não há por aí alguém que me explique porque é que a vida nos troca sempre as voltas, é perita em derrubar-nos as convicções, pois que eu nunca me imaginei pai de filhos, uma pessoa com responsabilidades, deveres de gente adulta – e já serei eu adulto? é que parece que cada vez mais a veia paternal toma conta de mim, se apodera das minhas determinações, são tantas as saudades do puto logo depois que dele me separo que a verdade é que há uma franca vontade de lhe dar uma irmã, de me oferecer muitas mais dores de cabeças destas, eu quero é fazer-me velho rodeado disto que tenho agora que é muito bom e está bem assim
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mg 2013
terça-feira, agosto 13, 2013
quinta-feira, agosto 08, 2013
todos gostamos muito
ainda assim, parece-me que serão sempre muitos os interessados em prosseguir com a sua banal vidinha: falando mal de toda a gente desde que se levantam até que se deitam, quando a sua própria vida não é mais do que uma fiel reprodução da vida dos outros, lixar tudo e todos, porque a desgraça alheia é a sua mais sincera razão de satisfação; serão sempre muitos os que continuam a preferir passar horas, dias, anos, vidas inteiras enfiados em gabinetes recônditos, envoltos em papéis e mais papéis, afundados em toneladas de conteúdos irrelevantes, sem nunca terem tempo nem vontade nem disposição para a família, para depois um dia perceberem que nunca foram sequer capazes de olhar os filhos nos olhos ou perceber a razão de estes nunca terem conseguido relacionar-se emocionalmente com eles; e, segundo parece, todos gostamos muito de andar a chorar o estado do mundo sem que nunca tenhamos tentado fazer nada por ele, todos gostamos muito de andar a lamentar a situação em que nos encontramos sem que nunca tenhamos tentado fazer nada por nós
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mg 2013
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mg 2013
sexta-feira, agosto 02, 2013
o mundo era aquilo que nós quiséssemos
conseguias deixar-me sempre tão desarmado com as tuas ideias simples sobre a vida que levávamos, sobre os dias que me pareciam tão vazios, dias desertos, dias que se prolongavam interminavelmente, nós sentados, tardes inteiras sentados junto à linha do comboio a olhar a ria e os barcos que de um lado para o outro rasgavam as águas, sentados à espera que o amanhã chegasse, quem disse que o amanhã nunca haveria de chegar, quem disse que esses dias não haveriam de dar lugar a dias diferentes, tu a esclareceres que o mundo era assim porque éramos jovens e estávamos entediados, o mundo não seria sempre assim, o mundo era aquilo que nós quiséssemos que o mundo fosse, haveríamos de descobrir que o mundo se viria a tornar naquilo que nós quisemos, que há sempre uma altura para tudo, cada vez me convenço mais que há uma altura para tudo, que o mundo de facto se torna naquilo que nós desejamos, as escolhas somos nós que as fazemos, a responsabilidade é nossa, ainda que nem sempre tenhamos consciência que a responsabilidade é nossa
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mg 2013
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mg 2013
quinta-feira, agosto 01, 2013
as borbulhas dos dezoito
e viver às vezes mais parecia ser uma forma de sobreviver, de aturarmos os dias, de permanecermos à espera que alguma coisa acontecesse, que o tempo transfigurasse o vagar da realidade: era preciso combater a serenidade do mundo, oferecer-lhe resistência, e como adorávamos subverter os minutos, anarquizar as horas, as longas horas de espera, nunca mais acontecia nada, nunca mais era outro dia, queríamos tanto que fosse outro dia, que os dias se sucedessem, mas era tudo tão lento, era tudo tão demorado, e para onde foi essa morosidade?, para onde?, tudo isso parece agora tão distante apesar de se conservar tão presente, os dezoito, aquela tranquilidade em colisão com as nossas revoltas interiores: aquilo foi uma idade tão lixada, as borbulhas dos dezoito, os tumultos adolescentes, as primeiras desilusões de amor, as enormes decepções de amor, as cicatrizes que ainda são visíveis, a descoberta da perversidade das pessoas, a necessidade de invenção de uma personalidade adulta, a ausência de instrumentos adequados para lidar com o mundo, e eis que aqui me encontro agora, mas onde é que eu estou agora? onde é que eu estou agora?
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mg 2013
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mg 2013
quarta-feira, julho 31, 2013
a inocência a regressar
a inocência perdemo-la quando o rigor do mundo nos explode na cara, aos dezanove, no dia em que o nosso primeiro grande amor nos transmite a mais dura das verdades: «já não te amo», quando alguém próximo nos parte e ficamos desamparados sabendo que nunca mais seremos os mesmos sem a presença dessa pessoa, quando percebemos que o mundo é hipócrita, que as pessoas são feitas de duplicidades e dissimulações e nós nunca teremos a capacidade, as ferramentas para lidar com isso, quando nos apercebemos da vertigem da vida na constatação de que a partir desse momento passaremos a olhá-la ao contrário, procurando percorrê-la em percurso inverso, em contraciclo, tentando aproveitar todos os instantes porque mais ou cedo mais tarde tudo acaba, todos partem, tudo morre, não fica cá ninguém, e eis que então nos nasce o primeiro filho e tudo se altera, tudo volta a fazer sentido, renascemos nesse dia, o puto que nos irá chamar «papá», as lágrimas nos olhos porque essa palavra te atinge com uma brutalidade transcendente na cara, uma palavra que canta, a totalidade dessa palavra, a responsabilidade melodiosa que ela te transmite, «papá: anda», e tu andas, «papá: dá», e tu dás, «papá: dança», e tu danças, e parece que refloresces, e percebes o caminho que tens de percorrer, o sentido das coisas, a inocência a regressar - transformada - mas a inocência a regressar
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mg 2013
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mg 2013
aquilo que conta está cá dentro
dizia-me ontem o zé joão, mais ou menos assim (e faço minhas as suas palavras): «e vêm-me agora falar de pessoas boas: essas boas pessoas, importantes, de boas famílias, que agora gostam de brincar aos pobrezinhos, ninguém nasce boa pessoa só por ser uma pessoa «bem nascida», essas pessoas que se julgam e julgam os outros pelo estatuto que julgam ter, o que apetece dizer é que queremos mais é que o estatuto se lixe, puta que os pariu mais a merda dos estatutos e aquela conversa do social e das boas famílias, das kikis e das tétés, sempre me fez espécie essa história das boas famílias, eu conheço bem a merda das boas famílias, e cheira tão mal ou pior do que a das outras, eu conheço bem os estatutos e o que aguenta quem não tem direito a ter estatuto, eu nasci à margem dos estatutos, eu nasci desestatutado mas de cabeça erguida, e continuo a pagar a merda dos estatutos dos outros, a merda dos estatutos dos outros, aquilo que conta está cá dentro, e eles, muitas vezes não têm nada lá dentro para além das notas»
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mg 2013
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mg 2013
segunda-feira, julho 29, 2013
tu vales muito
às vezes parece-te que as pessoas são feitas de pedra, que são compactas, feitas de uma rocha sólida, de uma substância densa, que nelas se pode confiar, mas vais a ver e as pessoas tantas vezes são feitas de vento ou de água, de vapor, as pessoas são compostas de substâncias instáveis que facilmente se alteram, que facilmente se modificam, as pessoas tantas vezes se esfumam sempre que pensamos que nelas nos podemos apoiar, as pessoas arredondam-se, são esquivas, as pessoas furtam-se, se não diz-me quantas vezes te sentiste ludibriado, enganado, quantas vezes experimentaste a desilusão na tentativa de perceber as pessoas? de que falamos quando falamos de pessoas? de tanta coisa, mas muitas vezes de volatilidade, de jactância, de intoxicação: cuidado com certas pessoas, elas estão à tua volta, tu sabe-lo, tu sente-lo, às vezes é por demais evidente mas o coração não permite compreender o que os olhos há muito vêem, bem sei que tantas vezes custa a admitir, até porque tantas vezes nem a ti te conheces – tu tantas vezes nem sabes quem és, quem és?, por onde andas? tens-te questionado ultimamente? - e embora te custe a admitir, também tu sabes que facilmente te podes transformar numa outra pessoa, também tu sabes que se quiseres te podes subtrair: a verdade é que há pessoas que valem zero, há pessoas que valem zero, mas tu vales muito, nunca te esqueças que tu vales muito
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mg 2013
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mg 2013
quarta-feira, julho 24, 2013
temos dezoito para sempre
nós só queríamos que tudo acontecesse rapidamente, queríamos viver no limite, queríamos ver o limite, gostávamos de transpor o limite, a fronteira de nós próprios, debruçarmo-nos sobre nós próprios, e era grande a vertigem, tantas vezes nos trespassámos na tontura do existir, a vida desenrolava-se na expectativa de nos deixarmos cair em tudo menos na rotina, tentávamos espezinhar a rotina, triturar os dias, e havia uma vontade louca de viver, acima de tudo viver, nutrirmo-nos de vida, alimentarmo-nos de amor, acima de tudo amor, nunca nos cansámos de oferecer amor, e é por isso que ainda hoje esses dias fazem tanto sentido, essa adolescência opulenta, essa adolescência preenchida de tanta coisa, essa adolescência repleta de tudo, esses amigos que tantos disparates fizeram, que tanto tudo fizeram, esses amigos que apesar de distantes, continuam muito amigos, porque a loucura não acabou, sempre que nos encontramos tudo regressa, e temos dezoito outra vez, e temos dezoito para sempre, temos dezoito para sempre
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mg 2013
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mg 2013
terça-feira, julho 23, 2013
o tempo por entre as fendas
os dias já foram tão grandes, as horas que não passavam, o vagar do mundo, tudo a demorar-se eternamente, o tempo que se deixava ficar, pachorrento, o tempo deitado sobre nós, o tempo que não escorria, os meses que gotejavam, era tudo tão arrastado, nós a rastejarmos pelos sítios à espera que a vida se acelerasse, que tudo pudesse acontecer mais rapidamente, nós e o tédio sempre de mãos dadas, e agora é a velocidade que parece estar constantemente a galgar os interstícios das horas, por entre as fendas, as coisas sempre a lembrarem que «estamos a ficar velhos», estamos pois, ainda ontem tivemos dezoito anos e estávamos enfastiados, agora parece que não há tempo para nada, para onde foi o tempo?, agora já não há horas vagas, só segundos ou minutos, o dia começa e não tarda já acabou, os meses sucedem-se à velocidade da luz, o tempo agora é supersónico, e é verdade: estamos a ficar velhos, caraças, temos filhos, temos contas para pagar, temos preocupações e vemos a vida a passar-nos à frente com uma corda atada ao nosso pescoço, a vida a correr connosco, a gritar-nos ao ouvido: despacha-te a viver, anda daí, despacha-te a viver que não tarda já viveste tudo aquilo a que tinhas direito, não tarda já viveste tudo aquilo a que tinhas direito
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mg 2013
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mg 2013
terça-feira, julho 16, 2013
o que me vale, o que me vale és tu
talvez até seja fácil, tu bem tentas fazer-me crer que é simples
suprimir as evidências, aquilo que temos diante dos olhos, o mundo de todos os
dias, tu bem tentas dizer-me descansa que isso passa, relaxa que isso passa, descontrai-te,
tranquiliza-te que isso tudo se esvai, o mundo não tarda será outro, mas a verdade
é que não passa, tudo se intensifica, nada
se altera, caraças, nada se altera, é tudo igual os dias todos, é tudo o mesmo,
é sempre mais do mesmo, o mundo cão, as pessoas cão, tudo cão, o que me vale és
tu a fazer-me crer que é simples suprimir as evidências, aquilo que temos
diante dos olhos, o mundo de todos os dias , tu bem tentas dizer-me descansa
que isso passa, relaxa que isso passa, descontrai-te, tranquiliza-te que isso
tudo se esvai, o mundo não tarda será outro, mas a verdade é que não passa, tudo se intensifica, nada se
altera, caraças, nada se altera, é tudo igual os dias todos, é tudo o mesmo, é
sempre mais do mesmo, o mundo cão, as pessoas cão, tudo cão, o que me vale és
tu, o que me vale és tu
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MG 2013
sábado, junho 22, 2013
que nunca hás-de
sabes bem que o mundo não acaba sem que tu acabes, que o mundo de hoje está bem diferente daquilo que era o mundo quando o sentiste pela primeira vez - lembras-te de como era o mundo quando o sentiste pela primeira vez? - sabes bem que nunca hás-de saber nada bem, que tudo muda, o mundo muda sem que dês por isso, o mundo muda sem que te apercebas que o mundo muda, o mundo fica diferente, tudo está diferente, até tu estás diferente, até tu estás diferente
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MG 2013
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MG 2013
quarta-feira, junho 19, 2013
quando um fogo em ti começar a arder
quando um fogo em ti começar a arder, e a alastrar, e sentires que a claridade se começa a espalhar, deixa que a combustão se propague, que essa postura se expanda, deixa que fulgure, que resplandeça, que alastre, que se faça luz, há luz em ti, não sentes?, deixa que ela brote, deixa que o teu íntimo se derrame pelo espaço, o que de mais privado existe em ti, deixa, consente que essa luz se dissemine, abdica de tudo o que é mais pessoal, oferece o que de mais denso existe em ti, concede, faz-te público, oferece-te a nós, é isso que te torna grande, essa capacidade, é isso que faz de ti um criador, é isso que queremos que nos ofereças, o teu momento, é essa a tua oportunidade, a tua primeira e última, o teu momento, é agora, aproveita esse momento que pode não haver outro, essa tua luz, há luz em ti, não sentes?
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MG 2013
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MG 2013
em querermos podemos
no brasil sai-se agora à rua para pedir pouco, e nós também pedimos pouco – o que pedimos nós? – justiça social, consideração pelas pessoas, pela classe trabalhadora, e dignidade, qualidade de vida, saúde para todos, menos corrupção, menos corrupção, caraças, uma distribuição mais equitativa de tudo o que é essencial – o que é que é essencial? – há tanta coisa que é essencial, uma redemocratização, que se fale verdade, que quem nos conduz seja frontal, que não nos enganem, que não nos enganem, queremos gente capaz, nós somos jovens e exigimos tudo aquilo que nos prometeram e não cumpriram, e são tantos, há tantos anos, os que nos prometeram e não cumpriram, queremos o nosso dinheiro gasto de forma coerente e racional, não queremos cortes cegos e depois ver o dinheiro que não gastam connosco ser gasto em show-off, um país para inglês ver, e não queremos só por querer, queremos porque achamos que temos direito, que temos direitos, e temos deveres, temos muitos deveres e agora, o nosso dever principal é este: falarmos, exigirmos, exigirmo-nos, querermos, e em querermos podemos, em querermos podemos
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MG 2013
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MG 2013
terça-feira, junho 18, 2013
se te instala o caos
parece-me que as coisas se começam a tornar cada vez mais
claras: se ao menos sentíssemos que nos ouviam – ninguém nos ouve realmente – que
escutavam as nossas preocupações – quais
são as nossas preocupações? – que se importavam com aquilo que estamos a sentir
agora – o que é que estamos a sentir agora? – que pudessem levar em conta as nossas
inquietações; se ao menos se apercebessem do nosso desconforto, da desilusão, do
desencanto, da frustração, da relevância das nossas ideias, actualmente pousadas
apenas num simples desejo de autonomia e de liberdade, de necessidade de um
mundo melhor, de mais humanidade – as pessoas precisam de mais humanidade, de
se libertar das ofensivas dos telejornais, da brutalidade urbana, deste mundo
assente na violência visual, as pessoas precisam de se sentirem livres –
sentes-te livre? – não precisam de jogos políticos, da disputa desenfreada pelo
poder, as pessoas abominam estas democracias de algibeira, estes democratas, a hipocrisia
de quem nos conduz – quem é que nos conduz realmente? – de se desenvencilhar destes
senhores cheios de orientações económicas e liberais; nunca te esqueças que a
palavra é uma arma, a tua palavra é uma arma, a tua prosa, a tua poesia, a tua capacidade
de pensar, de fazer frente com o intelecto, mostra-lhes isso, mostra-te isso,
enche-te disso, dessa fúria, desse desejo que as coisas mudem, ostenta a teu insatisfação,
mostra que não há forma de te imporem nada, que não há barreiras, não há, ninguém
te segura, porque tu és livre e tão depressa estás calmo e passivo como a
seguir se te instala o caos, tão depressa estás calmo e passivo como a seguir
se instala o caos
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MG 2013
sexta-feira, junho 14, 2013
nós desenhámos a tragédia
isto tudo só faz sentido – isto não faz sentido nenhum – quando nos lembramos que o mundo foi inventado por nós e para nós, o mundo foi inventado por nós e para nós, para sermos felizes, para que a vertigem acontecesse no exacto momento em que nos apercebêssemos disto que aqui se diz: que nunca estamos sozinhos, nós nunca estamos sozinhos – não estaremos sempre sozinhos? – e que entretanto continuamos todos aqui, os de agora e os que já partiram, para que quando nos sentíssemos empurrados pelo vento – às vezes sentimo-nos empurrados por todos, pelo vento, essa poderosa metáfora que nos posiciona no mundo, que nos faz perceber que nós próprios é que somos efémeros, e inventássemos outros nomes para as coisas, forjássemos memórias na expectativa de que tudo isto fosse remediável. mas isto não é remediável, a saudade consome-nos sempre, o tempo nunca volta para trás, os dias prescrevem – os dias nunca prescrevem, as noites nunca acabam - as noitesnunca acabavam sem que celebrássemos tudo quanto houvesse para celebrar. e havia muito para celebrar - celebremos, celebremos outra vez, abriguemo-nos no amor, naquela loucura antiga. porra, como tenho saudades daquela loucura antiga, dos dezoito, da irresponsabilidade, da ponte da sé que levava a sítio nenhum levando-nos a todo o lado, saudades da ria que estava sempre ali à mão numa espécie de cumplicidade, uma miragem, nós todas as noites deitados lado a lado, de cabeça para cima, para o céu, a ver as estrelas a parirem sonhos enquanto tudo isso já foi e já nada nos pertence, a nossa vida agora é um museu, a nossa vida é o que é, nós desenhámos a tragédia de nos tornarmos adultos, nós desenhámos a tragédia de nos tornarmos adultos
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MG 2013
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MG 2013
terça-feira, junho 11, 2013
o dia de amanhã
talvez nem seja tão difícil assim, virarmos as costas e desligarmos, sintonizarmos uma outra frequência, admitirmos a incompatibilidade, a desarmonia, a desconexão no meio desta selva, na dissonância da vidinha de todos os dias: desalinhemo-nos, deformemo-nos, desformemo-nos, desenformemo-nos, mas afinal quem é que quer ser perfeito todos os dias, andar com um sorriso pálido só porque o protocolo de estarmos vivos assim o exige, quem é que quer ser coerente a toda a hora, quem é que gosta de riscas ao meio, eu não gosto, eu não sei, eu não quero, eu não faço questão de acordar penteadinho depois de um sonho, eu gosto é de me perder na demência de ter de ser eu próprio, eu quero é espreitar para lá do horizonte de mim próprio, olhar o abismo e saltar, cair no vazio, eu não quero saber se atinjo todos os dias os objectivos, se estou apto, se sou capaz, claro que sou capaz, se toda a gente me compreende – às vezes até falo mandarim, não é importante que sejamos claros, nós não queremos ser sempre claros, o erro também tem o seu interesse, a sombra, o lado negro das coisas, o lado escuro de nós próprios, a bruma, que pouca gente nos entenda, um bom livro é constituído por partes que primeiro não fazem sentido e depois nos atingem na cara, um poema explode-nos sempre na cara, as palavras estão sempre armadilhadas, as palavras são bombas, tal como a vida também está sempre minada: nós nunca sabemos o dia de amanhã, nós nunca sabemos o dia de amanhã, portanto, guardemos o melhor só para quem nos merece, o melhor só para quem nos merece
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mg 2013
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sábado, junho 08, 2013
a morte no gerúndio
é preciso começar pelo princípio, é quase uma obrigação fundamental, a base de todas as coisas: tentarmos perceber a verdade sobre nós próprios, se somos verdadeiros, se não nos andamos a enganar, se queremos realmente ser quem somos - quem somos? - se vale a pena tudo isto, se estamos habilitados a ser nós próprios, se queremos ser nós próprios, és feliz? já te perguntaste se és realmente feliz, se estás bem contigo próprio, se não vives uma ilusão, um engano barato, já te questionaste se te basta seres quem julgas ser, quem tens sido, se te bastas a ti próprio, se te ficas por aí, não estarás em falta contigo próprio, com os teus, não te estará a escapar qualquer coisa, tens falado verdade contigo próprio ultimamente? tens sido sério? não te estarás a esquecer de qualquer coisa, do sonho, daquele sonho, de ti, do que prometeste a ti próprio aqui há tempos, sabes que tudo se dissipa, tudo isto se vai, tudo se acaba sem darmos por isso, não levamos nada daqui, nada de nada, isto passa tudo tão rápido, a morte no gerúndio, já dizia o herberto, a morte no gerúndio caraças, a verdade é essa: vamos morrendo todos os dias, vamos morrendo todos os dias, ao menos que morramos de pé, como as árvores
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MG 2013
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sexta-feira, junho 07, 2013
o mar ao fundo
aprende-se muita coisa com certas pessoas, muitas vezes sem que tenhamos consciência imediata do valor daquilo que estamos a aprender, e continuo a dizer que um bom professor não é aquele que nos ensina muitas coisas que depois, mais tarde, se esquecem, um bom professor é aquele que não se limita a debitar informação, factos atrás de factos, coisas por cima de coisas, um bom professor ensina-nos a gostar, aponta-nos percursos possíveis, abre-nos janelas, um bom professor é capaz de nos mostrar a importância de qualquer coisa sem nos vender ou impor essa coisa, um bom professor ensina-nos a sentir as coisas e por entre tantos caminhos que me indicou, registo o imenso valor humano e o facto de ter sido um verdadeiro «algarvista», alguém que se debruçava todos os dias, em todos os momentos, sobre o algarve, esse bocado de terra que tanto gostava de incluir em todas as conversas, sempre presente no modo de reflectir – agradavelmente circular, e no jeito de falar – moço da vila, esse algarve que ele tanto gostava de defender, porque era o seu, esse algarve que era o nosso, esse algarve que tem o mar ao fundo, como gostava de repetir
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MG 2013
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segunda-feira, junho 03, 2013
a barraca dos tiros
soube esta manhã que lhe chamavam a «barraca dos tiros», o espaço montado na saída norte de santa rita, local onde trabalho, aldeia da freguesia de vila nova de cacela, concelho de vila real de santo antónio, na fronteira com a conceição de tavira, terra muito bem frequentada há mais ou menos há 60 anos, durante as «curas de santa rita», um evento que acontecia no verão, com o pretexto de se tratarem as pessoas que sofriam de males nos ouvidos, e onde se instalava tudo o que era passível de ser comprado, vendido, negociado e apreciado, folia todo o santo dia e noite, festa rija, bailes, comes e bebes de vários tipos, vinho, muito vinho, bolos, homens e senhoras de todas as proveniências, meninos e meninas, sãos e menos válidos, burros e cavalos, animais de todo o tipo, carroças e carros de mula, tendas e barraquinhas. ainda hoje as anciãs da aldeia recordam com saudade essa festa que para ali se montava todos os anos, e se lembram da mítica «barraca dos tiros», que punha «os homens parvos» por causa das meninas do norte que nela se vinham instalar especialmente para a ocasião; de como nestes dias o raio das moças, belas e espadaúdas, montavam aquela banca para se ocuparem das carências sexuais dos (seus) homens
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MG 2013
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sexta-feira, maio 31, 2013
monólogo, 3
podia ser mais um dia, um dia igual aos outros, uma extensão de tempo que acontece sem que se dê por isso, esse tempo que passa por nós e nos põe velhos sem que nos apercebamos, mas amanhã terá um significado diferente, amanhã será o dia dos putos, o dia dos nossos filhos, amanhã será uma daquelas ocasiões que traduzem a felicidade de podermos ver a descendência a crescer, uma semente de nós que brota e se desenvolve e se fortalece a cada dia que passa, e nós a sentirmos que o puto que pusemos no mundo tem a sorte de poder ser feliz, ainda que o tenhamos de expor à merda que hoje em dia o rodeia, aos entraves que lhe criámos e continuamos a criar, que alguém lhe criou, mas deixa isso da mão, aproveita a felicidade de te poderes olhar ao espelho e te veres em ponto pequeno, nós somos um pouco mais nós ao vermos o reflexo desse sonho que se concretizou: olha para ti, miguel, tens trinta e três e tens aí um tu em ponto pequeno, tens uma família, e és feliz, aproveita que amanhã é dia de saíres para o campo, para a praia, e dares um chuto na bola com essa relíquia, estima-a bem e ela estimar-te-á bem também, oferece-lhe amor e experiências e não objectos e desfruta porque amanhã é dia de, também tu, seres puto outra vez
segunda-feira, maio 27, 2013
espreita-se os jornais e não é difícil perceber que não é só a questão da crise e a perversidade que dali advém - da crise e dos jornais, o horizonte tentacular dos seus efeitos, a extrema direita de novo assanhada e, à semelhança de outros tempos, a conquistar adeptos insuspeitos para as suas trincheiras, a alemanha agora com um programa de crédito para as nossas empresas, a alemanha, sim, a alemanha, e com a possibilidade de participar no seu capital, ou seja, de poder vir a mandar nelas, mas como é que se pode alinhar neste esquema?; é a crescente xenofobia, a violência gratuita, os radicalismos idiotas, a merda toda a vir ao de cima outra vez, não aprendemos nada nestes últimos cem anos, será que alguma vez aprendemos alguma coisa? até na poesia se sentem os sinais da merda que abrilhanta os nossos tempos: mas porque é que o novo livro do herberto hélder tem de ser tão caro, essa celebridade tenebrosa da poesia, mais parece um aproveitamento comercial da qualidade literária de um artista maior, os leitores a pagarem uma gula editorial, qual agarrados que dão o cu e as calças pela próxima dose de libertação.
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MG 2013
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sexta-feira, maio 24, 2013
monólogo, 2 [ou isto não dura para sempre]
esquece por um instante os anos que carregas e abandona todos
os compromissos que assumiste, todos os deveres e obrigações de agora, desresponsabiliza-te,
iliba-te de convenções, anarquiza-te nem que seja por um segundo, grita se te
apetece gritar, não te preocupes com os outros porque os gritos são para ser
ouvidos, não queiras saber se a tua obrigação é estares alerta, ninguém morrerá
se te desfocares por um instante, fecha os olhos se necessário, desata-te da
rotina que te obriga a ser quem és, de que vale seres quem és se já não és
livre, se já desististe de sonhar com o que gostarias de um dia vir a ser, depois de seres o que sabes já ter sido? já te apercebeste que os anos te vão roubando,
lentamente, todas as memórias, tudo se vai esfumando, tudo se vai esbatendo, não
te venham com merdas agora que esta mensagem servirá apenas para anunciar que
fechaste a porta aos que insistem em oferecer-te amarras, cobrir-te de
correntes, agrilhoar-te ao mundo de todos os dias, à tela do computador, à
televisão que insiste em pôr-te cada vez mais burro, desliga a televisão, destrói
a televisão, vais ver que de repente se fará luz na tua cabeça, quando alguém
te tentar repreender, já sabes o que fazer, carregas no interruptor, está mesmo
aqui esse interruptor, és tu quem o controla, a autoridade és tu, basta
desligares por um segundo, esquecer que já és crescido, que sabes tudo, tu não
sabes nada, tu tens dezasseis, faz como se tivesses outra vez dezasseis, anarquiza-te,
desliga-te e sê feliz, sê feliz que isto não dura para sempre
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MG 2013
quarta-feira, maio 22, 2013
pois, o martim
pois, o martim, esse puto dinâmico, empreendedor e diligente, que decidiu ainda com borbulhas na cara fazer pela vida e que agora circula na net como o miúdo que aos dezasseis encarou sem medos um touro académico com o argumento do «mais vale pouco do que nada», argumento esse que nos vai a todos enraband.... – eh lá, cuidado com a língua – entalando (assim fica melhor) na ganância capitalista dos salários de miséria. a verdade é que o puto, atirando-lhe uma resposta fácil (mas adequada), a calou: também, na realidade de hoje, calaria qualquer um. depois, vieram logo muitos em defesa da raquel, que por muito que custe tem de admitir que não foi o momento nem a circunstância e se não queria ser enxovalhada nas redes sociais devia ter deixado o puto brilhar perante uma audiência que está mortinha por empreendedorismos pititi e heróis de palmo e meio que são capazes de afrontar os senhores doutores e o bicho da crise. a realidade no seu melhor.
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MG 2013
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terça-feira, maio 21, 2013
monólogo [ou a arte de saber abrir os olhos]
abre os olhos, abre os olhos
porque na vida são mais as coisas que se perdem do que as que se ganham e há uma verdade primordial que te acompanha todos os dias, e tu nem agradeces, nem
te apercebes que neste preciso momento és o homem mais realizado do mundo, por
isso dou-te uma simples sugestão: reconhece o facto de estares vivo e de teres
saúde, e trabalho para pagares as contas, ainda que cada vez mais tenhas o monstro
da insegurança à espreita: esquece por breves instantes o medo, o facto dos
homens quererem cada vez com mais força destruir o mundo, e dá um beijo grande à
tua mulher, ao teu filho, um beijo imenso com baba, destina-lhes o maior abraço
que conseguires, oferece-te o maior abraço que consigas dar-lhes, agradece-lhes
o facto de eles existirem na tua vida, de eles serem a tua vida, do teu filho
ser uma fotocópia tua – já reparaste nisso hoje?, um espelho teu, um tu em
ponto pequeno – e atenta que tu que não és mais do que um ele em ponto grande, é
só isso que importa, é só isso que importa, o amor, o estares rodeado de coisas
boas, coisas destas, coisas celestes, coisas que te cegam os olhos de contentamento, um
nirvana dentro de ti, e está tudo tão próximo, tudo isto que te faz feliz,
vives todos os dias e nem agradeces, é só isso que tem valor no teu
mundo, é só isso que importa: abre os olhos e aproveita o momento, abre os
olhos antes que esta realidade se transforme numa coisa outra
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MG 2013
sábado, maio 18, 2013
números
hoje em dia, tudo se resume a uma tabela de excel, números, pessoas, abstracções. como se todas as coisas pudessem ser algarismos, tabelas nas quais se analisam convergências, tendências, aumentos ou recuos. é assim com a dívida, é assim com as falências, é assim com as taxas de desemprego, com as mortes e os nascimentos. números. tudo cresce, tudo diminui. é assim. os números aumentam ou diminuem. tudo bem. é assim, a vida: taxas que crescem ou diminuem. números. de acordo com o último relatório anual de segurança interna, divulgado no passado mês de março, entre 2011 e 2012, o número de participações de violência doméstica diminuiu, passando da 28.980 para 26.084, enquanto o número de homicídios conjugais aumentou de 27 para 37, no mesmo período. aumentaram, portanto, os números de mortes pelo companheiro. mortes pelo companheiro: de 27 para 37. mais 10. é assim. números. este sábado mais uma mulher de 59 anos foi assassinada com tiros de caçadeira pelo marido, na localidade de formigais, no concelho de ourém. é assim: números.
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MG 2013
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MG 2013
quarta-feira, maio 15, 2013
agora mesmo
agora mesmo pareceu-me ter outra vez metade dos trinta e quase quatro que tenho já em cima e lembrei-me do tempo dos cigarros fumados nos bancos do liceu, daqueles que de barriga vazia batiam na cabeça quando entrávamos para a aula das oito e meia, das tardes em que pela calada assistíamos a filmes obscenos, não dos que agora passam em todos os telejornais da noite mas daqueles que víamos às escondidas e que arrumávamos numa gaveta recôndita, por trás da estante dos livros ou debaixo do colchão com medo que se soubesse que os víamos. agora mesmo bateu-me a saudade dos dias em que as paixões rolavam à velocidade da luz, aquelas que nos cegavam e que dizíamos serem para sempre mas que nunca foram para mais de um mês. agora mesmo fui criança outra vez e, metido neste gabinete recôndito, pus-me a redigir um poema do fundo da algibeira, convicto de que isso seria muito mais valioso e essencial do que o cumprimento de tarefas necessárias nestes projectos fundamentais já que isto da vida só acontece uma vez - cada vez me convenço mais, e da maneira que isto está, mais cedo ou mais tarde vão rolar cabeças, deus queira que sejam as dos que merecem que isto com um filho para criar seria muito mais complicado. agora mesmo, quase que sem aviso – parece que estas coisas surgem assim do nada – apeteceu-me sorver tudo de uma só vez, extinguir todas as coisas más que me reserva esta breve passagem, lamber as memórias antigas para que elas me entrem outra vez na barriga como um gelado, e gritar em alto e bom som a inaudita ideia do cardoso: ah, como é linda a puta da vida
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MG 2013
terça-feira, abril 23, 2013
o que nos vem à cabeça
ideias brancas, ideias ainda cheias de nada, a folha a levar com a matéria bruta, o produto cru, a palavra primeira, o acto de pensar, algo que acontece primordialmente na cabeça, podia despejar toneladas de tudo aqui para cima mas
não sei o que se sucederia depois, se resultaria, se se extrairia alguma coisa
desse acto, se não seria apenas uma conduta de desespero, com certeza que sim,
uma atitude irreflectida, um movimento imponderado, afinal nenhum texto se
escreve sozinho, um livro precisa sempre de alguém que lhe ordene as ideias, as
palavras, alguém que ponha ordem no que se quer dizer, ou talvez não, talvez redigir
também possa ser apenas um debitar do que nos vêm à cabeça, escrever é pensar,
afinal, ou não é, às vezes penso que escrever pode ser somente isto mesmo, uma desarrumação,
um alvoroço, uma coisa em construção, algo que vai acontecendo à medida que vai
acontecendo, isto que para aqui se está passar
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MG 2013
sexta-feira, abril 19, 2013
não basta mudar as moscas
não basta mudar as moscas, temos de remover a merda, era o
que gritava o cartaz de um popular, funcionário público, aplicado no seu
trabalho, descontente com o facto do governo trocar apenas o trinco que servia a frente de ataque e, deixando tudo como estava, mais uma vez decidiu mudar as regras ao
jogo, corrompendo o jogo, contornando as decisões das mais altas instâncias
que o condenaram pelo insucesso das suas políticas, decidindo assim reter, para
lá do que já ficou para trás, mais cinco meses de subsídio de férias ou de
natal, já nem se sabe, e que era seu por natureza, do seu trabalho, de um
acordo entre as partes, sem pagar juros por isso, como se de um empréstimo forçado
dos trabalhadores e pensionistas ao estado se tratasse, o funcionário a dizer, ora tomem lá meus
amigos, andamos todos à rasquinha de dinheiros mas não faz mal, mal conseguimos que o
ordenado chegue para as contas mas não há problema, ora tomem lá meus amigos,
logo nos pagam quando puderem, não basta mudar as moscas, temos de remover a
merda, era o que gritava o cartaz e a inquietação de um popular
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MG 2013
não queiras, não queiras
não queiras ficar doente, terás um azar terrível, sofrerás
um revés conjecturável, ninguém correrá em teu auxilio, quando pensares que te
irão salvar ninguém estará lá para te salvar, ninguém te irá amparar, ninguém
te poderá livrar do mal, a máquina não terá disponibilidade para te ajudar, quem
és tu para pensares que te poderiam salvar, que te iriam salvar, quem te mandou
adoecer, ninguém te irá socorrer, não mereces que te socorram, não descontaste
o suficiente para mereceres uma protecção, um salvamento, isso aqui já não se
usa, não se usa porque não pagaste, porque não contribuíste, quem te diz a ti
que contribuíste, o sistema não se lembra, ninguém se lembra, não há registo,
não temos registo de ti, tu não existes, não mereces existir, não alimentaste o
sistema como queriam que o alimentasses, onde é que pensas que vais, assim
doente, não queremos aqui doentes, isto aqui não é para doentes, isto aqui não
é para ti, querias uma caminha quentinha, aqui não há caminhas quentinhas, não
temos nada para te oferecer, aqui não temos nada para ti, se estás doente e a
precisar, não estivesses, quem te julgas para enfermar, a doença aqui não tem
lugar, tu aqui não tens lugar
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MG 2013
quinta-feira, abril 18, 2013
não lhe venham agora dizer
só lhes ficava bem admitirem a manifesta incompetência, lia-se isso na cara da dona maria, era por demais óbvia aquela expressão deprimida,
uma simples expressão, um olhar humilde de derrota, de desgraça, coitada,
cinquenta anos e sem dinheiro para alimentar os filhos, agora, depois de uma
vida inteira de trabalho duro, que forte aquele olhar, um olhar capaz de nos
fazer experimentar os calos que transportava nas mãos, as lágrimas que lhe caem
dos olhos todas as noites, a preocupação por não estar a ser capaz de aguentar
a dura realidade, se esta gente ao menos fosse capaz de reconhecer os erros
sucessivos, a porcaria que têm vindo – todos –
a fazer, um olhar que desejava que fossem homens o suficiente para
admitir que talvez não fosse má ideia irem pregar para outra paróquia, para um
lugar distante deste em que ela se encontra, em que se encontram as pessoas que
todos os dias têm de sofrer com os erros desta gente, erros cada vez mais
evidentes, desta corja, deste bando de abutres que teimam em sugar o pouco ou
nada que ainda resta, eles e o resto da equipa que serve interesses externos,
interesses maiores, muito maiores do que todos aqueles que como ela agora não
sabem o que fazer da vida, não sabem o que fazer da vida, não é a dona maria a
culpada desta merda, não são as donas marias as culpadas desta merda, porquê
que tem de ser elas a pagar a factura, porquê que têm de ser elas a pagar a
factura, não lhe venham agora dizer que não há verdadeiros culpados nesta história,
não lhe venham agora dizer
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MG 2013
quarta-feira, abril 17, 2013
mundo de agora
ia escrever que coisas pouco interessantes se passam fora dos
livros, mas a verdade é que tudo se passa fora dos livros, a vida acontece é fora
dos livros e a realidade supera em muito a ficção, só de livros não podemos
viver nós, os livros contam coisas interessantes mas dos livros já ninguém
extrai nada, é por demais óbvio, cada vez mais óbvio, parece até que já ninguém
lê, que já ninguém quer ler, ninguém quer aprender, os personagens deste mundo real
andam todos em silêncio, prostrados, o palco da vida mais que pede acção, solicita
um enredo credível, vozes que se ouçam, vozes que se façam ouvir, alguém que
acorde o mundo e os seus actores que isto anda tudo diminuído, alguém que chore
em cena, que grite em desespero, alguém que seja qualquer coisa, que seja ele
próprio, que seja capaz de ser ele próprio, alguém que ame, que saiba amar, que queira amar, alguém que rasgue as páginas dos
livros, mais que não seja, alguém que pegue numa caneta e escreva um poema, por
muito mau que seja será sempre um poema, alguém que que se desalinhe que isto
de alinhamentos estamos todos fartos, fartos do tédio, onde é que anda o amor,
os valores, essa coisa que em tempos se chamou de humanidade, a generosidade, o
próximo, a preocupação com o próximo, a preocupação, a simples preocupação,
e já que se fala disso, todos temos direito à vida, a uma vida, a uma vida
digna, o raio que os parta se isto assim é que é o caminho, o caminho é outra
coisa, é sermos capazes de dizer basta, basta de estarmos rendidos, já basta o
que basta, porra, é triste mas por algum motivo vou sempre bater aqui: estarei
cansado disto tudo, não, não estou, quero é outra coisa, quero é outra coisa
melhor, um mundo melhor que este de agora, se não fossem os livros, a
família e os amigos, não sei como me aguentaria neste mundo de agora
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MG 2013
segunda-feira, abril 15, 2013
pequenos por natureza
não é erro de grafia, é só que nos últimos tempos tem-me
apetecido escrever apenas com minúsculas, não porque queira demonstrar a minha singularidade
intelectual ou, pelo contrário, de uma forma alegórica, revelar a minha modéstia,
mas porque acho que pode existir uma certa sublimidade no poder de um
texto encolhido, um texto que não exalte certas partes das palavras, as
primeiras letras, ou as letras primeiras, porque considero que não existem letras
que mereçam ser maiores que outras, um pouco como nós próprios, não há uns mais
que os outros, é certo que existem líderes, dirigentes e subordinados, mas a
verdade é que quem se pinta de grande tantas vezes acaba por ser muito mais
pequeno do que os pequenos que são já assim por natureza, quem se amplifica ou
é amplificado, tantas vezes, sem se aperceber, mais não faz do que reduzir-se, e,
no fim de contas, o mundo das palavras é o mundo das pessoas, e as pessoas, sendo
todas iguais, são todas diferentes, não precisam de se fazerem ou que as façam
grandes para serem vistas.
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MG 2013
sexta-feira, abril 12, 2013
Repetição
A falta de mulher é uma coisa do
caraças, e o que, e o que, e o que, e o que, e o que – que gaguez fodida,
fodida-da-da, que lhe entrava, especialmente quando alguma coisa o punha
nervoso – e o que ele queria mesmo era passar-lhe a mão pelo pêlo, àquela
vizinha que costumava despir-se todos os dias, sempre à mesma hora, no prédio em
frente, queria jogar-lhe a manápula à penugem, àquele botãozinho ardente,
arrimar-se a ela, roçar-se feito bichano, esfregar-se naquele corpinho de
cetim, que tesão aquele corpinho de cetim, aquela menina tão jasmim, mas não
sabia como, sempre que abria a boca punha-se a repetir as coisas que nem um
disco riscado, repetir que nem um disco riscado, repetir que nem um disco
riscado, tão intelectual e com este defeito na linguagem-gem, para além de
nunca ter sequer alguma vez beijado alguém, tirando aquela vez em que uma prima
mais afoita, numa tarde de verão de há muito, lhe saltou para cima, louca para
experimentar a carne, e ele, sem saber o que fazer, nervoso
que nem um pau, quase morria do coração, enquanto aquela vadia lhe mexia por
entre as pernas e o devorava, abocanhando-lhe todas as partes escondidas para
ver se o provocava, se lhe roubava algum acanhamento, se o transformava num
homem, se o punha a falar direito. E que desvario, aquele, o rapaz não merecia estar
a sucumbir de vontade, ai minha santíssima, aquela mulher tinha logo que morar ali em frente, e de ser uma loucura, e de o pôr demente de desejo, e
de se despir sempre àquela hora, na precisa hora em que ele também ali estava, todos
os dias, no prédio em frente, com o membro do meio de fora, cinco dedos a esfregarem a
coisa, a repetir desvairadamente não o que não lhe conseguia dizer mas uma
manobra de afagamento, a mão direita para a frente e para trás, para a frente
e para trás, para a frente e para trás, antes que ela se metesse para dentro e se escondesse outra
vez.
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MG 2013
segunda-feira, abril 08, 2013
Aprender
O que eu queria mesmo era aprender. Aprender o que fosse possível aprender, absorver tudo o que me rodeava, incorporar conhecimento, saber o porquê das coisas, talvez um dia tudo aquilo que já soubesse de antemão, por muito pouco que fosse, me pudesse vir a ser útil, actuar a meu favor. Já estudar, só mais tarde lhe ganhei o gosto, quando percebi que de outra forma seria muito difícil, impossível, custoso que nem o raio, perceber certas coisas que a vida do dia-a-dia não oferece, não explica, não justifica, ou então sou eu que não percebo, não chego lá, não compreendo, não falo a mesma língua. Cedo descobri que era preciso ler, ler muito, ler muito mesmo, ler tudo o que conseguisse, meter-me dentro dos livros, jogar-me de cabeça, deixar-me cair lá para dentro, não só porque lendo com certeza outros mundos me seriam apresentados, e eu gostava muito de ter a oportunidade de conhecer outros mundos, todos aqueles que fosse possível conhecer, de preferência de borla, sem gastar o dinheiro que não tinha, nem tenho ainda, mundos diferentes do meu, porque o meu tantas vezes era uma chatice, mas porque percebi que esses mundos seriam muito mais interessantes do que aqueles que todos os dias temos de aturar, os mundos desinteressantes das pessoas óbvias, das pessoas fúteis, das pessoas que nos aparecem à frente, que temos de aturar, o nosso mundo, afinal, o mundo das pessoas que se querem meter no nosso caminho, bem sei que há umas que acabamos por perceber que ainda bem que se meteram à nossa frente, acabamos sempre por ter surpresas, e no que toca a pessoas, tantas vezes nos enganamos, para bem e para o mal, mas eu sei, o caminho é de todos, o caminho faz-se caminhando e se caminhamos todos juntos, não há outra hipótese, aliás, temos mesmo de caminhar todos juntos, é um risco que temos de correr. Mas o meu caminho é o meu caminho, que me desculpem essas pessoas que não interessam, eu tenho a certeza que nada tenho que ver com eles, com essa gente que só empata, com essa gente que não se preocupa, que não quer saber, que se está nas tintas, que acha que não tem mais nada para aprender, que já aprendeu tudo, que tudo sabe sobre tudo, saber tudo ninguém sabe, coitado daquele que julga saber tudo, já pouco consegue aprender para lá do pouco que já aprendeu.
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MG 2013
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MG 2013
sexta-feira, abril 05, 2013
Oh as casas as casas as casas
Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas
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Ruy Belo
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