sábado, dezembro 30, 2006

A beleza intelectual de uma pessoa consiste na forma
como esta se despe, na gentileza com que se desnuda.

Um texto é uma forma de se despir um assunto.
Há uma sensualidade na forma como este deixa cair a sua roupagem.

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 28, 2006

A rarefacção do ar
neste ambiente infectado
obriga-me a
respirar o ar que me consome, a
consumir o ar que me respira, a
definhar para respirar o ar que
consumo quando tento
respirar. É assim que
fico sem fôlego quando
respiro este ar de contágio
quando sorvo esse ar para o respirar
quando respiro de um só
fôlego esse ar que me consome.
É assim que sobrevivo,
é assim que vou existindo
neste ambiente pervertido e
é assim que me corrompo também.

Miguel Godinho

domingo, dezembro 24, 2006

Expressão curiosa:
"O Natal não interessa nem ao menino Jesus".
Dá que pensar...

sábado, dezembro 23, 2006

É um eu que provém do eu

É um eu que provém do eu
Um corpo sem corpo que parte
desta matriz primordial
de uma mãe que sou eu
de um pai que é o vento
Descaramento amniótico de um ventre
que deixa nascer e pode matar
Imagem translúcida mutável, uma
aparição que pare imprime e comprime
a imagem espectral do que sempre somos:
frutos procedentes do Outro,
seres uterinos, umbilicais
sem figuração real
sem tão pouco sabermos
se somos um ou o outro.

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 22, 2006

A dor das árvores

As árvores lacrimejam e padecem
lembram-se das folhas
que sempre tombam
A terra ampara
e oculta essa dor
como que tentando conceber e
assimilar o trânsito das estações
penetrando no silêncio impenetrável
desse pesar que só as árvores
desnudam.

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Uma parte do texto

Abrir esse livro
Consumir uma parte do texto
e deixar-me consumir
Como se a mensagem que transporta
fosse suficiente para perceber toda uma vida
e entender o caminho que me leva
até ao momento
em que abro esse livro
e o fecho de seguida, saciado.


Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Sentado na nora percebi

Sentado na nora de Cacela percebi que
os figos secos têm o sabor da inocência
e que a luz deste sol de Dezembro
traz a palavra que me conforta
madurada numa memória
de um Dezembro intemporal
reflectida na cal
que se renova mas que
juntamente com o azul do céu
e do mar lá longe conserva
as cores da constância
deste Algarve onde nasci.

Miguel Godinho
Lúcidos silêncios

O gesto inocente na linguagem corporal
a tua violenta forma de ser sem se ver,
um incêndio. Vibram as enérgicas esferas
de luz ferem-me a íris - como que
lúcidos silêncios habitados pelo
respirar de uma ausência que é falsa
e então estremeço com a delicadeza
com que nomeias a palavra que me define
Consome-se o ar irrespirável projecta-se
em mim a sombra desse lugar
desse espaço que não é completamente vazio
Uma incandescência que se esconde
numa volúpia de vibrações
gravitam em mim as curvas óbvias da essência
que te compõem e resplandeço
ainda que sejas ferida que não cura
ainda que não sintas a transparência

Miguel Godinho

segunda-feira, dezembro 18, 2006

O cinema da Encarnação

Lembro-me do meu tio, cheio de vida, a desafiar o meu pai quando lá íamos a casa para ir beber um copo de vinho ao cinema da Encarnação. Esse cinema não passava filmes, o próprio sítio era um filme. Daqueles antigos, a preto e branco, mudos, com cenários de salas cheias de fumo, toda a gente a gesticular muito, uma banda sonora muito agitada. Eu era pequeno mas recordo-me bastante bem. Era o local onde se encontravam (e encontram) os amigos lá da zona. Um género de grémio associativo onde se jogava às cartas, dominó, onde se fumava e bebia. Muito. Falava-se da vida. O meu tio ria, falava alto, gritava mesmo, desafiava toda a gente. Nunca foi uma pessoa muito próxima mas por ser um sujeito muito alegre, gostava dele. Fazia-me sentir bem, brincava comigo. Tenho pena. Tenho muita pena. Fui encontrá-lo há pouco tempo confinado a um quarto onde havia um prato cheio de rebuçados, numa Clínica de Cuidados Paliativos em Idanha, num estado que se afasta em muito dessa memória que tenho dele. Não somos nada. Tão depressa estamos bem, como de um momento para o outro caímos a pique para o chão, por vezes sem ninguém que nos ampare a queda. Felizmente não é este o caso. Não somos realmente nada.
Acho que o tal cinema ainda funciona, pelo menos agora quando lá fui ainda vi a mesma agitação na zona, depois de tantos anos. Descobri o mesmo corrupio de senhores de meia-idade (e mesmo jovens) que lá confluem em busca do conforto dos amigos, esses amigos que parece que lá estão sempre, nunca saindo verdadeiramente do sítio. É uma rotina diária. É quase uma família. Vão a casa mas regressam sempre, todos os dias. Por isso nunca chegam verdadeiramente a sair de lá. No fim do dia vão a casa, não vão para casa.
A zona da Encarnação continua a mesma. A família cresceu, eu cresci. Mas houve uma pessoa que desapareceu entretanto. A minha tia. O meu tio está a desaparecer. Não somos nada. O cinema sente a falta dele. E eu sinto que devia ter sentido a falta dele quando ainda me conseguia reconhecer. Vim meio tristonho da clínica porque é sempre doloroso encontrar uma pessoa assim. Mas lembrei-me que a família mais próxima está praticamente todos os dias com ele e que no cinema da Encarnação toda a gente se lembra dele como se ainda continuasse a descer aquelas escadas todos os dias, para ir beber o seu copito de vinho com a malta amiga e dar dois dedos de conversa. Fiquei mais aliviado e, antes de me vir embora e de o deixar a repousar, peguei num dos rebuçados daquele prato que se encontra no quarto onde por agora descansa.

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Um afecto ondulante

Quero beijar as águas gélidas que me separam de ti
deixar o tempo passar de propósito para te perder
sabendo que te encontrarei em cada esquina
quero consumir o veneno que me intoxica de ilusões
e me derruba, me acalma, me sustenta de amores fáceis
mais fáceis que o que tenho por ti

acaba sempre por ser como na primeira vez,
é sempre uma primeira vez
quase uma volúpia de frágeis enganos, tão claros
uma sensualidade que não se dissimula, sabêmo-lo
e gostamos tanto de atropelar o afecto, de chorá-lo
como que sabendo que esse engano é o Amor
e é dor, é desejo, é calor, são duas almas
que se completam, que se contorcem
por um desejo mais forte que o sol.


Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Porque não disse bem o queria, vou tentar de novo...

O que as palavras [não] dizem II

Por vezes as palavras certas
não saem
e dizemos

o que não queremos
outras vezes

nem certas nem nada
e não dizemos
outras ainda

não há palavras para dizer
e não se diz
muitas vezes

também se diz
sem se dizer
mas raramente
fica por dizer
o que as palavras

não dizem.

Acontece pensar-se
que
se diz uma coisa

e diz-se outra
às vezes acha-se que

se ouve algo
quando o que se disse

não foi isso
outras vezes diz-se

mesmo sem se achar
que se disse
mas diga-se
o que se disser
a verdade é que

quase nunca
se diz
o que se devia dizer.

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Put some heresy where your heart is.

Ursula Rucker

terça-feira, dezembro 12, 2006

Aparição

Há um vazio essencial que antecede a escrita

depois vem um perfume que se vai espalhando

uma presença que se constrói quase sozinha

e se revela discretamente

vagueias progressivamente neste poema

espreitando timidamente por entre as palavras

tentando que te sinta e te

dê a forma das letras que te escrevem

só assim consegues que

te vá calmamente descobrindo

até que o esplendor que te nomeia

ilustre finalmente a fresca

claridade da folha de papel

e eu te sinta plenamente.

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Uma vida a 2 (ou 1x1)

Secreções líquidas e sensações translúcidas
foi assim que
tentámos que o coração brilhasse de amor por nós
ainda assim não importa o modo como nos olham
como nos julgam e decidem a impossibilidade
latente, demasiado óbvia da insegurança existente
nestas duas almas antagónicas, tão diferentes
é verdade que uma melodia distante rasga
constantemente a vela do barco que nos transforma
neste mar agitado que é uma vida em comum
dia após dia aprendemos novas lições
novas ideias que apontam para a dificuldade real
de nos aturarmos um ao outro
ou tentarmos fazê-lo
daí a conclusão tão evidente
um vezes um nem sempre é igual a um
raras vezes deixa de ser
um vezes um

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 06, 2006

O perfume da tua ausência

Revi-me no teu olhar transparente
na dor residual da tua voz surda
senti-me na quietude da tua óbvia falta
de comparência

por breves instantes pareci acordar
carregar de cor um mundo cinzento, pálido
uma nuvem que cobre este
sol que tarda em surgir

não eras tu que suavemente me seduzias
enquanto pedia à noite para se demorar?
não eras tu que me permitias ver-te sem te olhar?
não eras tu a brisa quente que me aquecia a face
nesta fria tarde de Dezembro?

senti-me na tua ausência
no teu perfume a nada, que teima em desaparecer

Miguel Godinho

segunda-feira, dezembro 04, 2006

O bom turismo

Como em tudo na vida, existem coisas boas e coisas más. Costuma dizer-se que as boas atraem as boas e as más, naturalmente, atraem as más. Um pouco por influência, por propensão, como que uma tendência. E no que toca ao turismo, penso que se possa perfeitamente aplicar esta fórmula. Se num determinado local o tipo de oferta começa por ter em conta aquele tipo de turismo que não traz nada de benéfico (mas que rende, minimamente – por enquanto...) à zona onde se instala, parece que logo atrás nascem (qual cogumelos) uma série de equipamentos que apontam exactamente nesse mesmo sentido. Fica no entanto por esclarecer o que é que se enquadra num bom turismo e que, no seguimento da ideia atrás defendida, poderá trazer vantagens à região.
Em minha opinião (e de uma maneira utópica), o bom turismo não é aquele em que a oferta presenteia o turista com o que ele quer mas sim aquele em que o turista vem descobrir na região que visita aquilo que ela tem para oferecer. É óbvio que na realidade não deverá ser bem assim uma vez que a oferta tem de possuir resposta para as exigências do turista.
Assim sendo, aquilo que está em jogo num turismo sadio não é mais que o seu nível de informação e, mais importante, o grau de formação do visitante e, logicamente o nível em que a oferta se enquadra. Se a região não possui um tipo de oferta que aponta no “bom” sentido, o problema agravar-se-á sempre porque uma vez adaptado ao tipo de oferta “fácil”, descuidada, torna-se muito difícil inverter a questão com a implicação de ter de se dar a volta a uma toda uma série de coisas, como que se de uma bola-de-neve se tratasse.
O viajante que está informado não vem certamente à procura do que existe em todas as outras regiões do globo, vem antes em demanda da diferença, do autêntico, do genuíno, do preservado, da essência do local que visita. O que não se revela muito interessado vem à procura do hotel onde se come muito e não bem, das piscinas grandes, de bares onde a bebida é barata e as canecas são grandes, de locais onde se “oferece” a sua língua em qualquer canto. Por sua vez, o turista informado procura uma oferta relacionada com o local onde se encontra. O que quero dizer com isto? O visitante informado não se importa que não falem a sua língua em todo o lado porque também se diverte a tentar comunicar na língua local. Não se importa também que num determinado local não exista uma piscina 20mx40m nem que num hotel não lhe sirvam a comida até o prato transbordar, será mais interessante se o prato apresentar um certo requinte, um toque de mestria na sua apresentação, de preferência enquadrado numa receita local. Não se importa que esteja mau tempo e não seja possível ir à praia, desde que a oferta cultural local cubra essa impossibilidade. Esse tipo de turismo não gosta de visitar um local onde existam cem aldeamentos, carradas de prédios e shoppings à farta em torno da sua residência – porque isso há em todo o lado, de uma maneira excessiva. Procura antes a tranquilidade, própria do período de férias, a preservação da natureza, a amabilidade das pessoas locais (não corrompidas pela ambição desmedida e pela mesquinhez assanhada que o excesso de visitantes famintos lhes incute na mente), a gastronomia sem muitos Macdonalds por perto. Não sei, mas parece-me que este tipo de turismo está meio abolido da nossa região. Muito por culpa da mesma se ter moldado no sentido contrário praticamente desde que se abriu ao turismo. Preferiu-se desde o início a quantidade em detrimento da qualidade.
Regressando às duas ideias iniciais deste texto, volto a lembrar que as coisas boas costumam atrair as coisas boas e as más arrastam as más. Da mesma forma, digo sem complexos que a formação e a informação (quer dos turistas, quer da oferta) é uma coisa que resolve praticamente todos os problemas. E é uma coisa que nesta região, está meio apagada. E isso reflecte-se no tipo de turismo que temos actualmente.
É absolutamente vital uma maior aposta na formação e na educação dos agentes responsáveis pela oferta turística uma vez que estes são domínios chave, prioritários para a definição de um plano turístico coeso. Sem uma oferta instruída não se consegue uma procura com qualidade. E sem uma procura de qualidade não saímos do mesmo tipo de turismo de baixo nível, sem referências, sem identidade e, como tal, sem relevância para o desenvolvimento de um turismo com interesse. E quem paga é a região e, em primeira instância, quem cá vive e que tem de levar com o turistazeco habitual que não respeita ninguém.

Miguel Godinho

quarta-feira, novembro 29, 2006

O que as palavras [não] dizem

Por vezes as palavras certas não saem
e dizemos o que não queremos
por vezes nem certas nem nada
e não dizemos
por vezes não há palavras para dizer
e não se diz
outras vezes diz-se sem se dizer mas
quase sempre fica por dizer
o que as palavras não dizem.


Miguel Godinho

terça-feira, novembro 28, 2006

Ainda o Algarve

Antigamente, eram muitas as bocas com fome mas ainda assim se decoravam casas e carroças e barcos e o que fosse sem que o aparato precisasse de um Mercedes estacionado a uma porta de madeira podre, sem que o prato do almoço se esvaziasse de conteúdo só para que o vizinho soubesse que
- aqui o papá tem um 320 enquanto ele, um simples 220!
Eram tempos em que não faltavam banhos de luz, de um sol tão ofuscante que queimou consciências e fez arder memórias de tempos de luta, de miséria, de sangue. Já não há barcos nem campos de figueiras nem alfarrobas nem burros cansados de dorso marreco. Agora, já só se conhecem marrecos cansados e sujeitos burros. O algarvio cantante ficou dormente e comprou um barco que não pesca, nem apanha choco à luz do petromax nem sai da doca que agora é marina. Mas o barco lá está à espera da hipoteca para poder navegar para outras bandas.
É a terra do algarvio de segunda geração e primeiríssimo nível que partiu para França há vinte anos e que voltou recentemente para “investir”. Trouxe um casaco novo de cabedal, uma gravata verde e bolinhas amarelas e muitas calças novas de fato de treino para combinar com as também novas camisas Lacoste. Tudo novo – para que se saiba. Saltou do anonimato por causa da mansarda rosa-choque que o avô deixou à custa do contrabando trazido de Ayamonte e que ele “remodelou” com dinheiros amealhados na mala de cartão que levou de cá. Dá que falar na vizinhança por ter transformado ligeiramente a casa acrescentando-lhe seis quartos, duas suites, uma piscina. E as divisões têm boas áreas! Os compadres não se cansam
- É um bom vizinho, não faz barulho, só cá vem uma semana por ano!

(a continuar)

Miguel Godinho
Tempus fugit

As recordações
de uma época que não perdura
mais

cessam

os saberes que já não vingam
os cantares que já não soam
as vozes que emudecem são

riscadas pelo lápis da memória

não se guardam
coisas que já não servem para nada que
já não fazem sentido

estas são as notas que o tempo guarda
para si próprio, egoisticamente
vislumbres
de um tempo concreto, ultrapassado

tudo é de ontem
tudo se esquece
menos esta certeza
que imprimo no papel.

Miguel Godinho

segunda-feira, novembro 27, 2006

Se me calo

observo, questiono, discuto, contesto
analiso, argumento, contrario,
contradigo, debato, apuro,
comento, critico, ouço


-me.
O silêncio

Será no preciso momento em que o silêncio principia que o “ruído” se faz notar. A confrontação com o eu sucede-se e pode tornar-se muito mais ruidosa do que uma sala cheia de gente a falar bem alto. E muito mais difícil de suportar. Nesta última não se exige uma confrontação, não nos é solicitada uma auto-consciência, uma apreensão do ser, do existir, do que somos, do que fomos, do que podemos ser, do que sentimos, do que queremos, do que nos preocupa.
Um espaço de desocupação oral e auditiva traduz sempre um ambiente de confrontação pessoal. Conduz-nos sempre àquele momento em que nos olhamos ao espelho e somos obrigados a olhar para ele, para nós próprios. A introspecção é sempre um momento de desafio, de confrontação e, ao mesmo tempo, um caminho. Uma estrada que nos leva ao auto-conhecimento, à essência do que somos e, por isso, é sempre uma descoberta. Pode revelar-se agradável ou não, mas é sempre uma descoberta. No silêncio, há muito diálogo. Interior.
Neste sentido, será que o silêncio existe?


Miguel Godinho

sábado, novembro 25, 2006

O tempo que circula

de tempos a tempos

idades assuntos desígnios
e máculas
regressam
como se a borracha do tempo
não apagasse a tinta que o mesmo escreve
como se o agora fosse apenas
uma cilada do findado
uma espera pelo amanhã
uma necessidade antiga

trazida de volta.

Miguel Godinho
O Warholismo

Outro dia, quando folheava o catálogo de uma exposição que esteve patente em Lagos (“zoologia dos trópicos”, obras de Nelson Leirner e Jorge Dias), dei de caras com um termo que designa uma atitude com a qual há muito me identifico embora nunca tenha encontrado uma expressão adequada para a designar. O termo warholismo assenta na perfeição. Warholismo deriva de Warhol, e assim sendo, warholar designa o acto de fazer despreocupadamente sem ter responsabilidade alguma sobre os resultados, seguindo a linha artística do criador que lhe dá nome.

Assim sendo, Warhol talvez tenha inventado uma terapia sem que o saiba. É tão bom warholar de vez em quando. Não raras vezes sinto que a criação não passa disso mesmo. Ou então, dito de uma outra forma (sim, porque dizer que a criação não passa disso parece-me muito redutor...), criar é isso mesmo: fazer despreocupadamente, embora tendo sempre em conta as preocupações...
Será este texto pop?

Miguel Godinho

terça-feira, novembro 21, 2006

Como se tivesse 18

Escreves com a mesma mão
com que me apalpas
e agarras na caneta com
os dedos que me apontam
usas e abusas das palavras que me seduzem
e me magoam

Sei que assim o é
e que lá tornarás
assim que de novo te esqueças

que essa ferida em mim
és tu.

Regresso sempre a este tema
escrito há tanto tempo
numa folha macilenta

é medonho como
as cores do tempo me escorrem pela cara
como se tivesse 18
envergonho-me porque a idade de hoje
é igual à de
quando me pediste
para te ver realmente.

Miguel Godinho

terça-feira, novembro 14, 2006

Al garvios de ontem

por amarem demais a vida simples
por quererem viver vivendo
fazendo do gerúndio um
estilo de vida
quis o céu que a pachorra
se abatesse sobre estas gentes

reprovam hoje os líderes
por não ser esta a forma de vida que
haveria de trazer
riqueza e grandiosidade
pois eu lhes digo que
quem tinha o mar ao fundo da rua
os figos a secar na eira
o sol como candeia

não podia querer ser maior


Miguel Godinho

segunda-feira, novembro 13, 2006

Memória que se esquece

Curva descendente
no cantar que enrouquece
na memória que se esquece
saber de ontem
numa versão falada
e ninguém escreve
caneta que perde a tinta
numa mão que atrofia
gelado que se derrete nas mãos do tempo

Devolve-se à terra o que é seu
o que dela nunca devia ter brotado
flor que murcha e que se aplaude
ninguém se importa com isso

Miguel Godinho

sexta-feira, novembro 10, 2006

Presente pretérito

Tão apressadamente me torci para
perceber de onde brotava
tão distinto aroma
tão rápido que nem percebi que
não eras mais que isso
um perfume ou uma química
um vapor que tão depressa se dissipou
como assim se consumiu.

Miguel Godinho

quinta-feira, novembro 09, 2006

Entendo a poesia e a escrita como a arqueologia do Ser. Aprofundar, descobrir, retirar aquilo que se encontra em mim e que foi soterrado pelo tempo, aquilo que necessita de uma reinterpretação, que precisa de ver novamente a luz do dia. O que escrevo tem que ver portanto, com assuntos que se querem revolvidos, com matérias passadas, com temas pretéritos que reclamam uma nova abordagem. Nesse sentido, acho que um qualquer assunto nunca fica de todo resolvido, nunca se esgota no momento em que me confronto primeiramente com ele. Há sempre uma questão que fica, uma história que pode sempre ter um final diferente, mesmo que aparentemente tenha já terminado. Por isso, sou completamente contra quem acha que quando se fecha um livro, ele não deve ser lido de novo, com uma renovada percepção, tentando novas acepções aos seus conteúdos. Tudo isto para dizer: terei sempre de me olhar ao espelho e terei sempre de regressar à origem. É lá que vive a minha constância, aquilo que nunca muda em mim. O meu cenário.

Miguel Godinho

quarta-feira, novembro 08, 2006

Ensinam-nos as coisas
segundo métodos subtis
lógicas sabedoras
da calosidade da vida.
Mostram-nos um caminho que
à partida parece fácil
óbvio e disposto
segundo métricas tão simples

equívoco profundo

a vida não é simples nem se calcorreia
assim

Miguel Godinho

terça-feira, novembro 07, 2006

Maria

Revela-me
o que sempre quiseste explicar
o que a boca quis pronunciar
e o coração não tolerou.
as dores de uma vida
Cerradas numa memória amarga

O pai não foi bom.

Toda tu és uma Maria
nome que trazias gravado
na alma
estigma que não cura porque sempre infecta
engoles e avassalas as mágoas como ninguém.

Miguel Godinho

segunda-feira, novembro 06, 2006

Mais um ano que passa na minha vida. Continua no entanto a dúvida:
Quantas letras são necessárias para me escrever?

Miguel Godinho

sexta-feira, novembro 03, 2006

Não raras vezes, as perguntas mais difíceis de se responder são compostas por uma só palavra.

Miguel Godinho

quinta-feira, novembro 02, 2006

Relembrar um tédio que esteve
no futuro e estará
no passado presente
como que uma peça que nunca
saiu de cena
num palco onde sempre actuo.

Miguel Godinho

quarta-feira, novembro 01, 2006

Quero o que não tenho
nem nunca tive nem sei o que é
o que não calhou mas devia
o que sempre foi sem nunca ter sido

como se andasse constantemente
a entoar uma canção
composta com o som das palavras
de um livro em branco.

Miguel Godinho

terça-feira, outubro 31, 2006


um silêncio em mim que transporta a dúvida simbólica existente na violência das minhas certezas.

Miguel Godinho

segunda-feira, outubro 30, 2006

A música das nossas vidas

Há tempos tive esta conversa com uns amigos e agora, quando li no Público o artigo de Vítor Belaciano [de 29 de Outubro de 2006], achei que era uma boa altura para escrever sobre o assunto. O tema da conversa e do artigo andavam à volta do excesso de música na actualidade, sobre a forma como a experimentamos e em que medida isso nos afecta. Referia-se naquele texto o facto do acesso à música estar hoje em dia demasiado facilitado e ser muito mais imediato. À distância de um clíque. Afirmava-se a necessidade de procurar a qualidade da experiência e não da quantidade, admitindo-se no entanto, a dificuldade em procurar essa mesma qualidade no meio das infinitas possibilidades. Por fim, concluía-se que o problema não está na proliferação da música mas na maneira como ela pode e deve ser consumida. Não poderia estar mais de acordo.
Antes de mais, possuir e ouvir música implica uma gestão das escolhas e das aquisições. Poderá então falar-se da necessidade de uma “dieta musical”, tal como refere Belaciano? Penso que sim. É necessário escolher, ainda que, muitas das vezes, tal seja impossível. Se pensarmos bem, já ouvimos música em todo o lado, muitas vezes imposta. Na rua, no centro comercial, na loja de roupa, no telefone (em espera), no supermercado, no elevador. No entanto, escutar a música que é imposta é uma coisa e incorporá-la nas nossas vidas é outra. Mas o que é certo é que de alguma forma essas imposições sempre nos afectam…
Há uns anos atrás, mais ou menos na altura em que apareceram os gravadores domésticos de CDs e em que na Internet se começou a disponibilizar muita música grátis, dei por mim a gravar tudo aquilo que me parecia agradável ao ouvido, passando grande parte dos meus dias a ouvir e a extrair música da web e a arquivá-la no computador e/ou CDs. Atitude que, agora me apercebo, não muito exigente (porque desregrada) e que muitas vezes resultava de escolhas que não eram totalmente voluntárias. Muitas vezes procurava na Net coisas que tinha ouvido num sítio qualquer, talvez mesmo numa loja de roupa, quem sabe? Mas, quanto a mim, a descoberta musical também passa por aí. Por outro lado, esse acesso a um leque muito grande de escolhas provocou com que a minha capacidade de selecção ficasse reduzida porque não estava habituado a lidar isso. E até conseguir perceber que não podemos usufruir tudo, andei meio baralhado, meio confuso com tanta opção. A certa altura, comecei a reparar que tinha uma colecção de CDs tão grande que, por vezes, quando os colocava no leitor nem sabia bem o que é que estava a tocar. Muitos (a maioria) nem capa tinham (porque o site não a disponibilizava), alguns nem sabia sequer o nome. Deve dizer-se que muita dessa música era simplesmente virtual, não tinha suporte físico (não a transportava para CD) e agora percebo que, pelo menos no meu entender, a música não pode ser somente virtual, tem de ter um suporte em que possamos agarrar, tocar e colocar no leitor, em que seja possível folhear o livro de apresentação do artista. Nessa altura, achava por bem gravar tudo, adquirir tudo, arquivar tudo, mesmo que não gostasse muito. Hoje em dia, a atitude é bastante diferente.
Tal como acho que ler um livro a partir de fotocópias não é exactamente a mesma coisa que folhear a obra, também acho que um CD precisa de ser original. É também por isso que nos identificamos com ele (que saudades do vinil!...). E como um original custa dinheiro (principalmente neste país!), não se pode ter tudo. E a atitude de tentar ter tudo implica uma certa desordem mental, uma incapacidade na gestão dos afectos, dos gostos. Assim, a minha maneira de resolver o problema foi passar a comprar somente originais. As escolhas passariam assim a ser mais apuradas porque só compraria aquilo que realmente gostasse e com o qual me identificasse. E resultou que passei a renunciar àquilo que gosto “mais ou menos” para passar a comprar unicamente aquilo que “gosto mesmo”. Nesse sentido acho que não importa de onde provêm as nossas escolhas porque, na realidade, nada nos é imposto mas sim proposto. Ainda assim, acho que há ambientes onde o silêncio faz muito mais sentido…
O facto de haver hoje em dia muita música e muita facilidade (talvez até demais) em aceder a ela não é, portanto, problemático, pelo menos no meu entender. É sinal de que existem mais criadores, uma maior facilidade na sua exposição e, por isso, mais formas de sentir a própria realidade uma vez que, por isso também, se nota um acesso facilitado a um conjunto de sensações que resultam dessa combinação música-ambiente-indivíduo. Assim, mais do que coleccionar tudo, o importante é coleccionar a música que faz parte de determinado período, determinada vivência ou momento da nossa vida, independentemente da forma como nos foi proposto. Para que possamos pegar nisso num outro momento da vida e vermos que tem uma contextura real e está associado a uma memória ou a um período da nossa vida. Assim, fará sempre sentido, em qualquer altura e em qualquer lugar. E, na maioria das vezes, isso não é possível com a musiquinha que nos dão no supermercado.

Miguel Godinho

sexta-feira, outubro 27, 2006

As coisas não são apenas o nome que se lhes dá.

Miguel Godinho

quarta-feira, outubro 25, 2006

Um amigo de outrora

Vi um amigo de outrora.
Apresentou-me um enredo. Foi uma história tão mal contada que ninguém acreditou. Também não se importara nada com isso. Pretendia apenas uns trocos para que pudesse satisfazer o vício e perder-se de novo em sonhos e delírios heróicos que lhe acalmariam as dores físicas e a ansiedade espiritual. Daquela cabeça brotava apenas uma necessidade: colocar o cinto no braço, premir o gatilho da pistola e disparar a bala que o transportaria para o purgatório do deleite, esse limbo de lama e trepadeiras de cor escura que se afilam pelas paredes e pelos corpos estendidos, amontoados em torno daquela substância que lhes dá vida e que ao mesmo tempo os mata.
Foi triste observar esse cenário de dor.

Miguel Godinho

terça-feira, outubro 24, 2006


Já saiu a obra "A vinha e o vinho no Algarve - O renascer de uma velha tradição", editada pela CCDRA.
O livro foi escrito por mim e pelos profs. Orlando simões, João Luís Fontes, Luis Oliveira e João Bernardes (sendo que os últimos dois foram os coordenadores da obra), a par de outros colaboradores. Podem encontrá-lo nas livrarias (pelo menos já o encontrei à venda na Bertrand,em Faro).

segunda-feira, outubro 23, 2006

Chuva de palavras
Num lago de frases por escrever
junto a uma estrada com uma história para contar

Caminho lamacento repleto de vírgulas
E pontos de exclamação junto a uma cascata de letras

Paisagem de quadras verdes
como árvores que aguardam pelo Outono para deixar cair as estrofes
que adubarão o terreno
onde alguém há-de semear o que sente
para outros depois colherem
aquilo que também sentirão.

Miguel Godinho

quarta-feira, outubro 18, 2006

esta dor que sinto de novo
uma faca de punho violeta
rasura
perfura

cansaço estranho
despertar numa noite escura
tremer
por sentir que não sei
quem sou

Miguel Godinho

segunda-feira, outubro 16, 2006

O Som

Só importa agora
ouvir o som das ondas
que inscrevem na areia
a cor da sua morte.

Miguel Godinho

sexta-feira, outubro 13, 2006

Al-gharb 1146

Não fosse a obstinação de um filho da mãe impaciente pelo direito à terra, devido à morte prematura de seu pai (seria?) e talvez ainda hoje no Gharb Al-andalus se passassem as tardes à luz de poesia e de acordes “alaúdescos”. Ao invés, esta mesma região viria a tornar-se num Portucale cristão, obsceno e altamente promíscuo, carregado de insensibilidade e intolerância perante o refinamento da cultura oriental. Como que por vingança, Allah viria a impor ao Deus Cristão uma pena que obriga ainda hoje a vida neste território (especialmente nas regiões mais a sul) a correr de uma forma mais lenta... É uma das heranças dos tempos em que a vida era branda e requintada, onde a Cultura era sublime e um dos pilares do Ser.
Após a leitura de Al-Gharb 1146 de Alberto Xavier é esta a impressão que nos fica. Esta obra de ficção histórica, recentemente lançada pela Editora Bertrand, transporta-nos para os tempos do Al-Andalus (a zona que correspondia à P. Ibérica, governada pelos muçulmanos). O Al-Gharb designava a parte mais ocidental deste território (a Lusitânia romana), inserida numa pequena parcela da Estremadura espanhola.
O autor inventa uma história a partir de dados históricos concretos, transportando o leitor para aquele passado perfumado e carregado de cor, quase que numa empresa académica, propondo ao mesmo tempo, explicações para os nomes actuais das terras, para as relações políticas, para os ambientes de época, embora as personagens não sejam mais do que o motor para apresentar o panorama histórico dos conflitos existentes à época, sendo que, muito possivelmente, e de acordo com os dados históricos, esta narrativa não foi mas poderia muito bem ter sido verídica.
Assim, somos convidados, de uma forma muito apurada e pormenorizada, a “visitar” a paisagem cultural da época, as formas de inter-relacionamento entre as várias autoridades, as ocupações das mesmas, os interesses, a alimentação, o vestuário, a visão sobre o “Outro”, a visão do mundo.


Uma proposta de leitura obrigatória. Para nos fazer almejar com o Gharb refinado e perfumado dos tempos em que este se orientava para Meca.

Miguel Godinho
publicado no "Jornal do Algarve" de 2 de Novembro de 2006

quinta-feira, outubro 12, 2006

O dia nasceu sombrio
A água do lago estava turva e a chuva que começou a brotar dos ceús vinha suja, enegrecida pelo fumo daquela fábrica lá ao longe.
Despi-me e entrei na água como que a carecer de uma ablução. Sabia que água não estava limpa mas ainda assim entrei, mesmo sabendo de antemão que de lá não sairia lavado. É daquelas coisas que não podemos controlar, temos simplesmente de atender aos instintos porque não há outra forma. Perguntas-me se realmente sabia o que estava a fazer. Não importa, nem sequer pensei nisso. Fi-lo. Sujei-me e chafurdei na lama. Foi o melhor banho que alguma vez tomei. Lavou-me a alma.

Miguel Godinho

terça-feira, outubro 10, 2006

Uma demorada ausência para contemplar as belas paisagens da Tunísia e aperceber-me uma vez mais que este Algarve onde agora regresso pertence a uma grande casa de família com vista para o mediterrâneo, esse grande pátio comum que agrega à sua volta um casario branco com pinceladas de azul de onde se avistam oliveiras, alfarrobeiras e laranjeiras. E sobretudo, mediterrânicos(as) de tez bronzeada.

Miguel Godinho

quarta-feira, setembro 27, 2006


Amo a quietude da tua existência

segunda-feira, setembro 25, 2006

Carrego nestas teclas para que decifres o que penso
jogando sobre uma página
esta mancha de letras,
este conjunto de palavras.
Pintura de letras agrupadas uma a uma
e espaços em branco usados para intercalar os substantivos, os adjectivos,
os pronomes, artigos e por aí.
Quão distinta fica esta folha
cheia de caracteres arredondados, pontiagudos, disformes.

estas palavras delineadas como formas usadas para esboçar
o que de repente se desenhou no meu pensamento
mãos que, como instrumentos,
ordenaram as teclas
para que a imagem que agora observas passasse a existir.

Miguel Godinho

segunda-feira, setembro 11, 2006

Algarvio com muito gosto...Mas há muito por fazer (ou por desfazer) nesta minha região...

New Millenium Algarve

O Algarve, a citação de uma civilização e de uma paisagem mediterrânica ou a síntese de um desejo mal conduzido de entrada no mundo “evoluído” de hotéis da última moda, iguaizinhos aos que vi em Cancun. Também nós por cá temos uns mamarrachos na falésia de Albufeiracun.

Neste formigueiro desenfreado do mês de Agosto, as formigas são feias, não respeitam o carreiro que aperta o intenso tráfego e atropelam-se por todos os lados. Fumegam pelo nariz frases de impaciência, convencidos de que a vida aqui tem de correr ao mesmo ritmo da metrópole. Ora é o barco que acede à praia que não circula mais rápido, ora é o velho que vai de pasteleira na estrada e que não deixa o BMW de matrícula francesa passar.

Quis ver nesta região onde vivo uma paisagem que os postais antigos mostram, de casas caiadas de branco, ocre e óxido de ferro, derramadas ordenadamente pelos campos cobertos de figueiras, laranjeiras e amendoeiras em flor, mas esta minha imaginação fértil já não consegue fantasiar quando tenho a janela da sala aberta.

Terra de eiras e de noras, poços e castelos de taipa. Chaminés rendilhadas e platibandas decoradas. Quem me prova que não é mais um produto da minha imaginação? Conheço um senhor que diz que se lembra mas eu não sei bem se hei-de acreditar. Nora, só conheço o “Aldeamento da Nora”, ali para os lados de Portimão.

O meu pai está sempre a dizer que antigamente gostava de ir ao mercado de Estói comprar botas de couro que um senhor que vivia ali para os lados de Quelfes fazia. Mas a ultima vez que lá fui com ele, apareceu a GNR e apreendeu todos os CDs da Floribela ao filho desse mesmo senhor.

Algarve. New Millenium Algarve.

Miguel Godinho

quinta-feira, agosto 31, 2006


De repente
lembrei-me das cores de ontem
dos cheiros daquele presente
desse passado que é de novo agora
como se nunca tivesse deixado de ser

Como que um presente sempre
presente nesta memória de agora
agora e por agora
porque de repente
a muleta do tempo tropeça
na vontade do teu regresso

de repente

Miguel godinho

quarta-feira, agosto 16, 2006

Os banhos das plumas caprichosas

Folheio o jornal e mais uma vez ouço alguém dizer na sua crónica caprichosa que o Algarve não presta e que o Algarve não presta mesmo.
E o que faria essa pessoa naquela praia algarvia ontem? Teria apanhado boleia para a praia errada? Estaria ela a pensar, enquanto se estendia na rebentação das ondas, que estava em Carcavelos? Enganar-se-ía na citação da região mencionada no artigo de jornal? O que faria ela nesta praia reduzida e superlotada algarvia?
Ah...Alguém me disse que chegou ao Algarve na semana passada. Adora esta confusão dos meses de Julho e Agosto mas não pode dizer nada aos seus amigos lá da redacção porque parece mal. Uma pessoa com a sua classe tem de explicar que detesta o Algarve porque é o que se diz hoje em dia. Por isso, prefere dizer que são os meninos lá em casa é que a obrigam a rumar a sul.
É o habitual. Pseudo-turistas portugueses, intelectualóides convencidos que vêm dar de comer ao suleco esfomeado que não vive mas sobrevive o resto do ano, à espera do lisboeta de Mercedes por pagar que aluga um quarto duplo para sete e que pede uma dourada para dividir com a mulher e a sogra. Os filhos que partilhem uma omeleta entre eles.
São estes excursionistas que nos abarrotam as praias, famintos, sequiosos por um metro quadrado de areia fina. Nenhum deles aprecia o Algarve... Cuidado com esses bandos maledicentes mas viciados em Algarve, esse produto que só podem consumir em Agosto e que nós algarvios temos acesso durante todo o ano. A inveja fá-los criticar o que não têm e quem tem. É o habitué do pessoal que gosta de glosar o que consome. É bem entre a classe.
Pois por cá o sol brilha todo o ano e as praias também lá (aqui) estão em Setembro, em Março, em Maio, enfim, acho que durante todo o ano. E vazias desta gente! E quão bom é sair do trabalho e em cinco minutos estar ali, a banhar-me nas águas atlânticas que o Mediterrâneo aqueceu.
E os restaurantes que tanto tempo demoram a atender esses portuguesinhos de língua afiada continuam a servir o mesmo peixe fresco quando o mês de Agosto acaba. Podem demorar um pouco no atendimento mas por cá o tempo não corre à mesma velocidade. Por cá há sempre tempo. E paciência. Heranças de outrora, de um tempo em que estes turistazecos ainda não tinham descoberto as maravilhas desta linda região.
Se esta se corrompeu tanto ultimamente como gostam de apregoar, pensem porquê.

Miguel Godinho

segunda-feira, agosto 14, 2006

Mulher do sul

Cores claras numa névoa indiciada
Mancha de luz num leito de penumbra

Revelas-te como que quimera.

Questiono as tuas ausências
Mesmo sem saber quem és
Rebelde, fugaz nos sinais,
Devaneio de experiências inconstantes
Inebrio de loucura salutar
Fumo embriagante de haxixe berbere

Sonho mediterrânico de mulher quente
Qual cobra que se enrosca na alma.

Veneno que não dói mas inflama

Sofro quando te vejo
Morro se não te sinto.

Miguel Godinho

quarta-feira, julho 19, 2006

O meu tédio não dorme
Cansado existe em mim
Como uma dor informe
Que não tem causa ou fim.

Não sei o que desgosta
A minha alma doente.
Uma dor suposta
Dói-me realmente.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Eu não sou eu nem o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

In Alberto Xavier, “Al-Gharb 1146”

quarta-feira, julho 12, 2006

A bomba que vive em ti
Sabe que as coisas não são como aparentam ser
Sobrevive como se fosses Deus
como se soubesses que tudo isto é um sonho
Que tudo é uma coisa só

Miguel

terça-feira, junho 27, 2006



Do mundo, da vida, do que aqui fazemos
Tentam-se descrições, caracterizações, definições, aproximações, explicações
Granjeiam-se conclusões.
Revelam-se verdades prontas e asseadas, produções de bolso,
certezas impingidas,
premissas associadas à força.
Sustentam-se embustes pois são o alento dos eruditos.

Miguel Godinho

segunda-feira, junho 19, 2006



A criação dos céus

Começou por desenhar este espaço na Sua cabeça
Ilustrou-o com as cores da tua presença
Derramou demasiado azul, ofuscado que estava com a luz dos teus olhos.

Miguel Godinho

sexta-feira, junho 16, 2006



Warhol meets Pessoa


Dizem que nos tornamos psicóticos quando tentamos ver por detrás do que se vê.
Dizem que não se deve penetrar no mistério do imperceptível.
Agrada-me bastante contrariar o que por aí dizem.

quarta-feira, maio 17, 2006

Lendas de Mouras Encantadas – a recuperação de um património imaterial

Na semana inaugural da exposição “Mouras Encantadas e Tesouros” (inserida no projecto “Mouras Encantadas e os encantamentos no Algarve”) patente no recém-criado Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, torna-se necessário reafirmar a importância que projectos deste tipo assumem para a recuperação e revitalização deste património imaterial tão valioso, especialmente nesta região.
Numa tentativa de registar e reanimar a memória que esta zona possui sobre esta realidade, procura-se de uma forma alternativa à tradicional, uma vez que esta já não se processa antes - de frente para a lareira, durante os longos serões sem televisão ou Internet, fazê-la transitar para as gerações mais jovens, quer através da própria exposição, quer através das restantes actividades de todo o projecto (apresentação de lendas recorrendo a performances lúdicas, exibições de diaporamas interactivos sobre a presença islâmica, nas escolas da freguesia, recolha de lendas junto dos mais velhos, apresentação de jogos didácticos).
Através de uma linguagem adequada às gerações mais novas, o projecto aventura-se na tentativa de desenvolver nas crianças um primeiro contacto com as lendas e com o imaginário relacionado com o “universo mouro”, numa tentativa de transportar o passado para a atmosfera do presente, cruzando-o com a disponibilidade dos mais jovens na recepção do imaginado e do fantástico.
Entroncadas num contexto que logicamente alude para um passado islâmico, estas heranças são reflexo de uma memória comum que se conserva há tantos séculos no misterioso mundo do imaginário popular, tendo continuadamente, ao longo dos séculos, vindo a transformar-se e a reinventar-se, satisfazendo a necessidade de transitar por gerações e gerações, até aos nossos dias. Está no entanto, nos últimos tempos, de alguma forma ameaçada a sua continuidade, em resultado das alterações operadas no modo de estar familiar e comunitário. Praticamente já não existem serões em família, os mais velhos (que detinham a sabedoria oral) já não assumem a importância que avocavam no seio familiar. É também por isso que projectos deste tipo são tão importantes: para além de darem continuidade à circulação geracional de um património, promovem ainda o contacto dos mais jovens com as gerações mais velhas. Assim, tentam “a partir de restos (...) colocar o presente, em suposta continuidade com o passado” e, assim, contrariar “(...) a característica das sociedades modernas, homogéneas” que “é precisamente esse corte com o passado, com o heterogéneo, com o invisível”, como diria Marc Guillaume.
Numa sociedade como a actual (que tem alguns problemas em lidar com o tempo) torna-se importante “adequar” o passado aos modos actuais de apreensão, sem que nesse intento se procure simplesmente “facilitar” a compreensão dos fenómenos. Aquilo que por assim dizer está “facilitado” é apenas o acesso ao seu universo. Como se afirmou, já não existem os serões em família, os mais jovens já não procuram aprender com os mais velhos, quer porque os mesmos já não estão presentes como estavam antes, quer porque já não são vistos como uma fonte de sabedoria. E se já não existem esses contextos em que se processava a assimilação deste património oral, torna-se muito difícil que continuem a transitar no tempo da mesma forma (que transitavam). A vida das pessoas e dos mais jovens tornou-se solitária. Os processos de aprendizagem e de assimilação são mais complexos e, portanto, há que adequá-los a estas novas exigências sem que se os transforme numa “obrigação” de assimilação de um passado simplesmente pelo seu “peso”...
Como tal, resta apenas agradecer às entidades que tornaram possível este projecto não sem antes fazer um balanço (ainda que muito provisório) da primeira semana de contacto com as escolas da freguesia de Vila Nova de Cacela, dizendo que todas as crianças adoraram a visita ao Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela (local onde decorre uma das três actividades do projecto). Se nenhuma delas conhecia ou sequer sabia o que eram “Mouras Encantadas” quando entrou no Centro, à saída todas elas foram capazes de criar uma peça teatral sobre a temática, com enredo criado pelas próprias.
Foi por assim dizer, para todos, e certamente continuará a ser, com o desenvolvimento das restantes actividades, muito positiva a experiência.

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 03, 2006

Quem sou

Cingindo os alicerces da noite
ao emprego desta escrita,
protelando o meu desvio.
Demente por não pisar este chão
não sentindo como tu sentes.

Emaranhado na minha ausência
Afastado, apartado.
Longe da multidão dispersa
Aqui, neste canto, quieto,
consigo ser quem sou.

Miguel Godinho

sexta-feira, abril 28, 2006

Quando nos apercebemos que o futuro próximo é incerto, buscamos sempre o conforto da constância (aparente) do passado...

quarta-feira, abril 19, 2006

Transfigurar esta beleza natural
Fragmentar uma realidade aparente
Questionar o nome de uma cor
Reivindicar a existência de um novo verbo.

Miguel Godinho

quarta-feira, abril 05, 2006

Abro os olhos,
Cor.
Sol. Sensação de espuma.
Renascer. Olhar o infinito.
Permanecer quieto e comungar
Partilhar este estado de graça
Gritar calado esta sublime beleza
Sonhar acordado, esquecer esta tristeza.
Tarde de sol, fonte de luz,
Névoa de paz, força, leque verbal.
Percepção de ascese
Circunstancial, porém.
Questiono
Esconde-se esse sol
Perde-se essa graça
Repõe-se esse negro.
Impõe-se a solidão.
Névoa de dor, fraqueza, inverbalidade
Incapacidade espiritual.
Sentimento monocromático.
Envelheço forçosamente.
Faleço.

Miguel Godinho

quarta-feira, março 29, 2006

És uma cor
Lançada numa tela branca
Pelo meu pincel de pau.
Não preenches nenhuma forma,
nenhum quadrado ou circulo mal desenhado
Deleguei-te uma tarefa
Animar esta tela
Quis que não mais pertencesses
À caixa onde vivias
Para passares a existir num sítio onde fazes mais sentido
A minha pintura.

Miguel Godinho

quarta-feira, março 22, 2006

Sou escultor e obra da introversão

Sossego desassossego
Agora não sou eu. Agora sou
Agora quero ser eu. Agora não consigo
- Certezas goradas.

Solta-se um imenso pesar.
Desamarra-se uma raiva profunda
Apercebo-me de novo
do que não consigo mostrar.

É o outro eu a tentar e eu a não deixar – repito.

Agora eu:
Manifesto um sincero desgosto
Por não conseguir exprimir a minha existência mental.
Quero muito mostrar que sou
Aquilo que não consigo ser.
Eu ainda não sei se
quererei ser
O que não consigo ser.

Acho que sou escultor e
obra da introversão.

Miguel Godinho

sexta-feira, março 17, 2006

Semáforo [i]moral

Reaviva-se na mente
uma vontade de explodir
Solta-se um pensamento que caduca a sanidade.
Entrega-se a alma
ao som de um terror
Anestesia-se este corpo, preparando-o para esquecer

Despreza-se por ora esta higiene mental.

Descura-se a rigidez a que nos impusemos
De novo, a necessidade de alienação. Escape. Frescura mental.
Quão bom é poder sentir
este quebrar de rotina
Quão mau é experimentar essa culpa.

Uma necessidade de despudor
Como que se a dor valesse a pena.
Como que se o inferno fosse irmão da claridade.
Luz de sangue, defeito clemente.
Rasgo de negritude alva numa alma programada
Por um semáforo [i]moral.

Nota: A moralidade só se distingue da imoralidade por causa de uma letra.

Miguel Godinho

quinta-feira, março 16, 2006

Morreu o meu outro eu. Este pensamento que me confortava, esta cor que me distinguia, enfraqueceu até morrer. Tornou-se velho muito rapidamente. Queria ver tudo, perceber a essência do mundo e entender a distância que me afastava de ti. Foi-se embora, não avisou. Partiu sem demora não sem antes questionar qual de nós era real.

Quando o eu pergunta ao outro eu qual de nós é real é porque nenhum dos dois sabe se existe. Afinal qual de nós terá morrido?


Miguel Godinho

quarta-feira, março 15, 2006

Existir, ao teu lado

Gostava de ser o mar
Dançar ondulante e exprimir-me em espuma
Confortar o teu barco.

Gostava de ser o mar.

Queria ser a lua
Conter em mim a luz que
Aclara o teu terraço
Numa noite de Agosto.
Gostava de ser aquela flor
Renascer com a primavera
E ser de novo colhida por ti.
No fundo queria apenas ser
Para existir, ao teu lado.

Miguel Godinho

sexta-feira, março 03, 2006

Esquecer-te

Protejo esta indecisão permanente
Este amor irresoluto.
Empato um afecto dúbio,
Hesitante, apesar de decidido.

É como uma afeição que se divide entre o mar e a terra
Entre o sol e a lua.
Quadros de luz e penumbra
Fazem regressar esta memória
Esta incerteza que me estanca o juízo.

Esquecer-te, ainda que por agora.

Miguel Godinho

quarta-feira, março 01, 2006


A novidade contemporânea e os recortes artísticos

Os criadores eficazes, sejam eles músicos, artistas plásticos, escritores, não são catalogáveis. O seu eclectismo, a sua capacidade para agregar e captar de forma inigualável outras formas de entendimento da vida e dos aspectos desta, atribuindo-lhes novas formas através das suas criações, conferem-lhes o mistério e a aura que tanto nos apraz (enquanto fruidores das suas obras), concedendo-lhes ao mesmo tempo uma dimensão que impossibilita a sua inserção em categorias rígidas de classificação.
Aquilo que de fabuloso a arte constantemente nos apresenta é o facto de afirmar que não existem sistemas suficientemente válidos na vida que não valham a pena serem desmontados, reinterpretados e fundidos em novos esclarecimentos.
É sobre esta base específica que a contemporâneidade actua. Apesar de, desde sempre a arte se apresentar como uma reinterpretação de algo (uma vez que tem de partir de um ponto, tem de ter uma referência), hoje em dia, essa premissa foi levada ao extremo, talvez reflectindo a complexidade da vida dos nossos dias, resultante da quantidade de informação que a toda a hora se torna crescente.
Veja-se o caso da música ocidental contemporânea. No que concerne a esta e nos dias que correm, já não existe praticamente nenhuma composição que não disponha de uma brisa electrónica. Nascem músicas nas quais apenas se reorganizam elementos já produzidos e utilizados vezes sem conta. Usam-se e abusam-se dos samples – elementos pré-concebidos, muitas vezes extraídos de pequenos fragmentos sonoros de outras composições anteriormente executadas ou de dados captados que provêm de sons da natureza, do quotidiano, do dia-a-dia, repetindo-os continuamente através de loops. Nesta linha, o termo remix sugere uma remistura de elementos que provêm do já executado.
Com o resultado dessas práticas aclama-se nascer o novo uma vez que este se introduz como tal e porque, de facto, é novidade. Os mais puritanos estremecem quando se lhes impõe esta ideia porque afirmam que o novo não pode partir de máquinas que apenas recolhem elementos já executados. Nesse caso, qualquer composição contemporânea (dentro das mais variadas artes) seria uma farsa. E no fundo, não o será? Utilizam-se, adaptam-se, mexem-se, apropriam-se e transformam-se os componentes de uma (ou várias) composições para se atribuir uma nova leitura, uma nova interpretação do(s) elemento(s) primordiais.
E que elementos primordiais podem ser estes? Dir-se-ía acertadamente que tudo e nada. Porque para algo ser considerado primordial (primordial vem de primeiro, primo – único; sem igual), e embora a partir do momento em que nasce se torne único, esse algo necessita de um ponto de partida, de um nascimento. E é esse momento que define a novidade.
Ao mesmo tempo e como a própria raiz etimológica da palavra indica, a partir do momento que se mexe nalguma coisa, essa mesma coisa passa a ser uma outra coisa - Tudo se gera a partir de algo e, como tal, tudo se desenvolve a partir de vários pontos de partida que por sua vez têm outros pontos de partida. Sem que isso implique uma noção de evolução, de progresso artístico. Apenas se vão explorando elementos a partir de novos rumos, novos campos, novas linguagens.
A arte e a vida tinham de nos conduzir a este ponto quando se propôs o industrial e o massificado, se é que não foi sempre isso. Sempre nos apoderámos do que é dos outros e do já feito, para o transformar, afirmando-o como se fosse nosso. E de facto, não passa a ser?
Quando Duchamp expôs um urinol virado ao contrário, afirmando ser uma “fonte”, estava a fazer isso mesmo. Descontextualizou um elemento que passou a ser outra coisa, quando mudado de sítio. Atribuiu-lhe um nome que nada tem que ver com o fim para que foi executado e, assinando-o, afirmou ser uma composição sua. E não era?
A arte e a vida são feitas de recortes e de apropriações, pequenas dentadas do que vemos e do que aprendemos, engolidas e digeridas por cada um. Nada é novo porque já existe de alguma forma mas tudo passa a ser novo, quando se medita e se mexe no assimilado.

Miguel Godinho

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Sou pai desta dor

Sou pai desta dor
Prossigo na minha recusa de azul, embalando o meu retiro negro
Proclamo a sede desta melancolia
como que se parisse todos os dias uma dor que me apraz
porque me faz sentir
sensações de sangue.

Cortejei tanto tempo uma afeição que imaginei,
fantasiei uma necessidade constante de me provocar,
de agredir aquilo que me conforta.
Eu não posso gostar desse eu
porque esse eu não me deixa ser
eu.

Miguel Godinho

terça-feira, fevereiro 21, 2006


Locais sem lei

Existem sítios no Algarve (e com certeza em muitos mais locais do país) onde as leis que regulamentam os licenciamentos de construção se encontram apenas sujeitas à aprovação dos municípios que oferecerem melhores condições para o cumprimento dos objectivos de quem quer construir. E é só escolher entre dois, com sorte três ou quatro, conforme o número de concelhos que constituem a fronteira onde esses terrenos se encontrem situados. São aquilo que se poderia chamar de terrenos sem lei, parcelas de terreno que estão localizadas em zonas nebulosas, algo obscuras, zonas situadas num limbo capaz de destruir o conceito de “clandestinidade”, pela sua inequívoca capacidade de equivocar. Terrenos ambíguos pelas suas margens de manobra, mas inocentes pela indefinição geográfica.
A deficiente organização do nosso território traz por vezes ao de cima situações bastante interessantes no que toca às suas não-tutelas administrativas. Desta vez, o palco da acção localiza-se à saída de Faro, ou à entrada de Loulé (entenda-se como convier), junto ao restaurante Austrália. Ao que parece, aquilo que se pretende é que aquele sítio venha a albergar o novo stand da Fialgar, licenciando-o enquanto inserido numa acção justificada pela necessidade de remodelação e ampliação das instalações industriais da empresa Madeisul, Lda. O município de Loulé deu luz vermelha aos trabalhos após verificar que as obras já estavam em andamento (sem licença desta autarquia). No entanto, o município de Faro já tinha dado luz verde por entender que o terreno estava abrangido pelo seu PDM. Qual das vereações tem poder para decidir sobre esta questão quando se descobre que os PDM’s destas duas autarquias se sobrepõem?
A juntar ao problema de indefinição da tutela, deve dizer-se que aquele terreno se encontra inserido numa zona classificada como Reserva Agrícola Nacional. Já não toco neste assunto porque quem conhece aquela zona, observa perfeitamente que não existem batatas naqueles terrenos mas sim quantidades imensas de automóveis a necessitar de serem podados. Ainda assim, no PDM de Faro, lê-se que aquela área “consta como zona interdita a actividades não ligadas à agricultura, mas admite actividades ligadas ao licenciamento industrial”. Manobra muito difícil de contornar, pelo menos no meu entendimento.
No entanto, aquela que me parece a questão central, consiste na tentativa de deslindar que município tem a obrigação de definir o licenciamento e em que moldes tal se pode efectuar. É certo que o PROTAL virá ajudar a clarificar a questão, mas até lá, como solucionar o problema?
Deverá ainda dizer-se que no local onde actualmente se localiza a Fialgar (junto ao Teatro Municipal de Faro) virá a nascer um Hotel. Portanto, temos aqui três elementos extremamente importantes na consumação de todo este processo: 1) a vontade de nascimento de um Hotel; 2) a necessidade de transferência de local de uma empresa para a implantação do Hotel e 3) a autorização no licenciamento de construção por parte de uma autarquia que não tem competências claramente definidas na matéria.
Convém por fim afirmar que não sou contra a construção, mas sim contra as intransparências e contra os limbos que por aí existem, para além de querer apenas alertar a população e as autarquias para o problema na falta de organização e gestão do território.

Miguel Godinho

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

A paliação da dor

Concertam-se os estigmas de ontem
Quando se redescobre o prazer do amanhã.

Revela-se a imagem do dia
Compreendendo-se a negritude da noite.

Descobre-se a bonança da alma
Arrumando as intempéries mundanas.

Não se acalma uma alma dorida
Cobrindo-a de anestesias.

Miguel Godinho

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

A Triste História da Cultura


A Cultura sempre foi uma criança com graves problemas de saúde. Teve dificuldades no crescimento, chamavam-lhe “minorca”. Talvez por isso, desenvolveu fortes problemas emocionais e psicológicos, perdendo o amor pelos amigos e principalmente pelos pais, já que estes estavam constantemente preocupados com outros assuntos e nunca com ela. Sem que se apercebesse bem disso, também eles deixaram de acreditar nela, ao vê-la afastar-se progressivamente, basicamente porque – dizia – não foram capazes de acompanhar os tempos, sendo não raras vezes, bastante conservadores nas suas opiniões e nas atitudes que tinham para com ela.
A Cultura nunca amadureceu verdadeiramente e continuava a usar com os mesmos brinquedos, mesmo partidos, já sem pintura e descolorados pelo tempo. Brincava sozinha, tinha uma grave fobia social. Escolhia frequentemente os mesmos sítios para se esconder, isolando-se nas suas diversões simplesmente porque tinha medo de partir à descoberta doutras. Tinha medo de ser confrontada, ajudada pelo facto dos pais, inúmeras vezes, lhe vestir roupas que ela achava ridículas.
Apesar de já ter tentado por várias vezes afirmar-se entre os outros, parecia manifestar agora uma tendência algo depressiva. Seria talvez resultado do clima de desconfiança e descrédito na vida. Tudo à sua volta parecia estar a desmoronar-se. Já não conhecia a casa, os seus pais decidiram “arranjar” e restaurar (alegavam eles!) a moradia, com dinheiro que lhes emprestaram a custo, mas a verdade é que acabaram por desvirtuá-la por completo. A vista que a Cultura tinha dantes para o mar tinha agora sido trocada por um prédio em frente porque os seus pais, a fim de “melhorar” a casa, tiveram também de vender o lote de terreno ao lado já que o dinheiro emprestado não chegava. Decidiram entregá-lo a um casal espanhol que anos antes havia manifestado interesse em adquirir parte da propriedade. A Cultura ficou desolada. Não se sentia mais em casa.
Era demasiado jovem quando assistiu ao divórcio dos pais, perdendo as referências que a ajudavam na sua fraca estabilidade. Não era mais capaz de dar resposta às necessidades sociais de integração. Ficou como que desorientada.
Bem perto da maturidade, quando os pais, já velhos e falidos, em resultado dos vários empréstimos desmedidos e de uma vida faustosa que não conseguiram manter, lhe disseram que era já altura de se fazer à vida e se aguentar sozinha, não foi capaz, tendo como única hipótese de sobrevivência, a mendigagem. Resiste ainda hoje com as esmolas dos turistas, os quais, diga-se de passagem, só lhe dão dinheiro por pena.
É triste vê-la neste estado, neste meio onde não pertence. Definitivamente não merece o triste fado que a vida lhe reservou. Pode dizer-se que não teve culpa. Como criança que era, cabia aos que tinham a sua tutela mostrar-lhe o caminho, auxiliando-a nos momentos em que mais necessitava. É mais triste ainda ver que não está a conseguir encarar a situação de uma maneira positiva. É compreensível. É muito difícil conseguir suportar uma situação onde não existe dignidade. Psicologicamente, está muito abatida e fisicamente não está saudável. Longe vãos os tempos em que mal ou bem, lá ia conseguindo levantar a cabeça. Está sem dinheiro e as roupas estão velhas – aquelas mesmas roupas que não gostava de vestir. Se passar por ela, ajude-a. Senão, dê-lhe pelo menos um pouco de atenção para evitar que o destino se torne ainda mais negro...

Miguel Godinho
Publicado no "Jornal do Algarve" em 02.03.2006
Esta mão que se fechou

Mão plena de dor
Abrigo de sensações distantes
Cores escravas de um passado violento
Cheiros que ontem estavam vivos e que o tempo abafou
Esta mão que se fechou.

Mão febril e angustiada
Aturdida e insensível, calejada por essa dor
Essa mancha que não sai
Qual cor que desbotou.

Miguel Godinho



segunda-feira, fevereiro 13, 2006

As praias que se vão

As cores deste progresso
Por cá são mais esquivas.
Marés politizadas por vontades egoístas
Que gritam morte aos desabonados
Condenam à extinção os desterrados.

Suplicam os barcos mortos na Ria
Por um último banho de mar
Recusam o destino imposto
De uma faina que não mais é.
Permitem-se crescer os corrompidos
Fazem-se cair os indefensáveis
Convertem-se as esperanças em derrotas
Adivinha-se o dia que se tornou noite.

As praias que se vão...

Miguel Godinho
Vontade de

Revela-se diante de mim um desejo
Suaves fogachos de cinza e dor...
Inverte-se a mera impressão do não querer
Troca-se pela áspera insatisfação do não ter.

Desejo revelado de forma insana

Vontade de tudo sem balizas

Quero que me não digas não - sinto vontade de o fazer

Penetro na loucura do ter que ter
Faço porque tem de ser.

Miguel Godinho

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Está tudo bem? Vai-se andando...

Outro dia tive uma conversa telefónica com um amigo do Norte (de Lisboa, convenhamos...) e, tal como é hábito (sem nos apercebermos disso) quando ele me perguntou se estava tudo bem, respondi: vai-se andando... Este facto fez-me pensar numa questão no mínimo curiosa, quando cruzada com algumas coisas que ultimamente tenho andado a ler e que, por isso, me têm despertado a atenção para certos assuntos. Enquadremos a situação:
A Rua de Portugal, em Faro, Lagos, Loulé (entre outras cidades) tem este nome já que seria através desta que os algarvios iam a Portugal. Reflectindo sobre este facto, vem-me à memória um Algarve de outros tempos (que só conheci por livro), dotado de um sistema de impostos particular (senão inexistente pelo menos ineficaz, contornado quase sempre pela lei do contrabando), enquadrado num país onde os Reis se apelidaram até aos século XVIII de Reis de Portugal e dos Algarves. O Algarve era então uma região distinta, apartada de Portugal, quase um país diferente anexado a Portugal, se quisermos... O que mudou com o passar dos tempos?
Esse tal amigo que atrás referi dizia-me pelo telefone – na próxima semana vou ao Algarve! – mesmo sabendo que vinha a Faro e que por aqui iria ficar. Afirmava-me, como sempre faz, à semelhança do que dizem aqueles que não são algarvios, que vinha ao Algarve, como se se deslocasse para o estrangeiro, referindo-se ao Algarve como um todo, tal como fazemos quando afirmamos ir a um país estrangeiro. A única região, sem ser o Algarve, em que se passa uma coisa do género é o Alentejo, não sucedendo no entanto, exactamente a mesma coisa. Referimo-nos sempre ao Algarve como um todo, como um país.
É interessante verificar-se que até há bem pouco tempo atrás, era costume os Algarvios dizerem que íam a Portugal quando se deslocavam acima da serra do Caldeirão. No sentido inverso, os serrenhos algarvios, quando desciam o Caldeirão, diziam que vinham ao Algarve. Como se o Algarve se compusesse somente por barrocal e praia e fosse entendido como inserido numa outra realidade.
Será que herdámos alguma coisa desse sentimento de desanexação em relação ao restante território?
O turismo veio reforçar esses dizeres e esse sentimento de divisão para com Portugal, transformando a região numa espécie de destino de férias (e não mais que isso), reforçando a ideia de ser esta uma outra região, um outro país para onde se vai quando se quer sair da rotina laboral.
A região serve agora unicamente para se passar férias. Quem visita vem para férias e quem aqui habita vive em função das férias dos outros. Não se produz, não há indústria (senão a do Turismo), há um vazio entre os períodos de verão. Espera-se simplesmente pela estação quente. Conheço muitos que aguardam calmamente (no conforto do fundo de desemprego) pelos seis meses de calor. Por cá há sempre tempo e não é necessário ter os bolsos muito cheios porque também pesam. Não existem modelos formais de vida, nem nos rendemos à necessidade efectiva de rendimento regular. Não se tem nem se faz, vai-se tendo e vai-se (calmamente) fazendo... É engraçada a maneira como o gerúndio é tantas vezes empregue nesta região. Será só influência do castelhano ou realmente a vida é entendida como um contínuum onde nada de verdadeiramente importante acontece? Entenda-se como se quiser mas se amanhã lhe perguntarem se está tudo bem, e você responder vai-se andando..., pelo menos pense porquê que está a usar essa expressão...

Miguel Godinho

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Eremitério

Vendi a minha sombra
Livrei-me do meu frio.
Curvei-me e recusei a minha aura.
Petrifiquei – não mais sinto
Negro é este nevoeiro que me assola
Fugi do mundo porque sim.

Miguel Godinho
Cacela

Suaves são as cores daquele véspero conforto
Quente é a brisa vinda de sul.
Escrevo. Penetro no infinito azul. Sou...
Reconheço-me naquele sabor oriental
O branco do casario casou com o azul do mar
E agora caminham para o amanhã
Se o amanhã lhes for fiel...

Miguel Godinho

terça-feira, janeiro 24, 2006

Produções tradicionais II – A Tradição não significa cristalização

No último artigo que escrevi (Produções tradicionais – Um Mercado sem potencial? – JA, Nº2546) senti que dei a entender que o meu ponto de vista no que toca à temática das produções tradicionais defende que estas são melhores que as de produção industrial porque não inovam, são imutáveis e valem por isso mesmo. Estaria assim de acordo com uma perspectiva que defende a autenticidade da tradição produtiva devido à cristalização e antiguidade nos procedimentos. Não é de todo isso que defendo. Aquilo que proclamo encaminha-se exclusivamente no sentido de alertar para a carência de revitalização deste tipo de produções enquanto alternativa às produções industriais, a par de todos os outros factores referidos no artigo precedente. Quer um tipo de produção quer outro são necessários. Torna-se obvio que também estas produções de tipo tradicional precisam de inovar, de melhorar na sua tecnologia de produção e/ou qualidade, e, mais importante, na forma de se mostrarem – na sua promoção.
As produções tradicionais resultam de um saber-fazer aliado a um tipo de matéria prima. No entanto, já só esses dois factores não bastam para a sua sobrevivência. Estas têm sofrido bastante porque necessitam de estratégias promocionais adequadas e de investimento ao nível da produção. É aí que entra a necessidade de criação de uma rede que as defenda e apoie e, ao mesmo tempo, que possibilite uma mais fácil circulação pelos postos de venda, na tentativa de facilitar também a chegada ao consumidor.
Já muito pouca gente acha interessante comprar um cesto de verga simplesmente porque este resulta de uma produção de tipo tradicional. As pessoas tornaram-se mais exigentes e esse facto também ajuda na revitalização deste tipo de mercado. Mas também pode deitá-lo a baixo. E é por isso que estas produções necessitam de se renovar, sem que para isso percam o carácter tradicional. Ao nível da produção as técnicas podem bem ser as mesmas que antigamente mas os produtos é que precisam de ser outros, mais apelativos, quer pela inovação na qualidade, quer pela adaptação aos critérios do gosto actual. Falo por exemplo, como já havia referido no artigo anterior, nos produtos de design. Se o tal cesto de verga atrás referido for visualmente apelativo de certeza que muito mais facilmente se vende. As técnicas continuam a ser as mesmas que no antigamente, mas a apresentação do produto é que é diferente.
Pensemos no sal. Para além do sal extraído na região ser de altíssima qualidade (comparativamente com o de produção industrial), se este for correctamente promocionado, com um invólucro apelativo e com uma estratégia de mercado (auxiliada pela multiplicação dos postos de venda de produtos tradicionais, que começam a nascer), obviamente que se venderá muito melhor.
Com tudo isto quero apenas dizer que a tradição não vale pela inalterabilidade mas sim pela adaptação. A tradição já não é o que era...

Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Do solo ao sul – A nova poesia algarvia

A música inundou a poesia, como se da fundição das duas se transcendesse a tradicional apresentação de uma obra escrita. Ao som da palavra “musicada” (alguns dos poemas que se apresentam na obra foram recitados ao som de composições musicais, criadas com o fim de suscitar ambientes / cenários poéticos) os presentes na apresentação desta “Antologia de novos poetas algarvios – Do solo ao sul”, oferecida no dia 20 de Janeiro na Biblioteca Municipal de Faro, puderam saborear esta mútua iluminação, provando da colaboração fascinante que este modelo criativo introduz. A palavra coloriu-se de um fundo melódico e a música ganhou, através da palavra, um lirismo diferente.
Ao sul, a poesia ganhou um fôlego renascido, atestando uma força crescente na vida cultural desta região e mostrando acima de tudo o nascimento da “nova” poesia algarvia e não da poesia “dos novos”. Esta assume-se na sua plenitude, vigorante, motivada e motivadora. É uma oferta do Algarve ao Algarve e resume-se numa palavra: luz.
Importa agradecer à Associação Recreativa e Cultural do Algarve [ARCA], a par de todas as outras entidades (nomeadamente a Faro – Capital Nacional da Cultura) que contribuíram para a realização deste projecto, devendo também salientar-se a importância desta nova actividade que é a acção editorial que a associação referida agora comporta. Facto que deve ser realçado tendo em conta o potencial criativo literário que existe na cidade e na região em si. Por isso mesmo, espera-se então que esta obra nascida na passada sexta-feira, se torne apenas na primeira de muitas e espera-se também que possa servir de estímulo criativo para todos os poetas e escritores que ainda não tornaram públicos os seus escritos.
Um grande bem haja aos autores e amigos – João Bentes, Pedro Afonso, Pedro Sousa, Ricardo Paulo e Ruben Gonçalves, pelo seu contributo enriquecedor à cultura, à região, aos espíritos, e à Dra. Maria Aliete Galhoz pelas excelentes apresentação e organização dos textos dos autores. È caso para dizer que uma nova geração de criadores algarvios está a ganhar forma...

Miguel Godinho

segunda-feira, janeiro 09, 2006

O Algarve

“Ultrapassada a Planície heróica de Manuel Ribeiro, o descampado de trigo ou os povoamentos artificiais de sobreiros; cansados os olhos das linhas rectas e das planura que ao longe se perde no horizonte, começam as pequenas elevações, chega-se a Almodôvar, atinge-se o alto do Caldeirão e eis o Algarve; eis a Província mais bela, mais alegre e mais característica de Portugal, onde o clima é mais ameno e onde o ar é mais leve e a vida mais despreocupada. A terra, exposta ao Sul, amorosamente banhada pela brisa do mar e afagada pelo calor do sol, cheira mais a terra; a flora, xerolífitica, compostas por plantas espinhosas, de folhas pequeninas, coreáceas, levada pela acção do homem ao estado de maquis ou de uma garrigue típica e aromática, exala por toda a Província um perfume característico, estonteante por vezes, que vem do alecrim, da murta, do rosmaninho, alfazema, do tomilho, da aroeira e do xaral viscoso e extenso da serra a que se junta o aroma das flores das amendoeiras e laranjeiras. As cores da terra são mais quentes e a beleza +e mais sensula e polícroma; o povo, de tez morena, é mais alegre, mais ardente e mais emotivo; tem menos preconceitos que no Norte e tem um ar acolhedor, franco e sociável aliado ao gosto de palrar, de rir e de cantar.”

Guerreiro, Manuel Gomes (1999) – O Litoral, o barrocal e a serra no ordenamento agro-florestal do Algarve, Faro, Edição da Direcção Regional de Agricultura do Algarve, p.14.