quarta-feira, março 01, 2006


A novidade contemporânea e os recortes artísticos

Os criadores eficazes, sejam eles músicos, artistas plásticos, escritores, não são catalogáveis. O seu eclectismo, a sua capacidade para agregar e captar de forma inigualável outras formas de entendimento da vida e dos aspectos desta, atribuindo-lhes novas formas através das suas criações, conferem-lhes o mistério e a aura que tanto nos apraz (enquanto fruidores das suas obras), concedendo-lhes ao mesmo tempo uma dimensão que impossibilita a sua inserção em categorias rígidas de classificação.
Aquilo que de fabuloso a arte constantemente nos apresenta é o facto de afirmar que não existem sistemas suficientemente válidos na vida que não valham a pena serem desmontados, reinterpretados e fundidos em novos esclarecimentos.
É sobre esta base específica que a contemporâneidade actua. Apesar de, desde sempre a arte se apresentar como uma reinterpretação de algo (uma vez que tem de partir de um ponto, tem de ter uma referência), hoje em dia, essa premissa foi levada ao extremo, talvez reflectindo a complexidade da vida dos nossos dias, resultante da quantidade de informação que a toda a hora se torna crescente.
Veja-se o caso da música ocidental contemporânea. No que concerne a esta e nos dias que correm, já não existe praticamente nenhuma composição que não disponha de uma brisa electrónica. Nascem músicas nas quais apenas se reorganizam elementos já produzidos e utilizados vezes sem conta. Usam-se e abusam-se dos samples – elementos pré-concebidos, muitas vezes extraídos de pequenos fragmentos sonoros de outras composições anteriormente executadas ou de dados captados que provêm de sons da natureza, do quotidiano, do dia-a-dia, repetindo-os continuamente através de loops. Nesta linha, o termo remix sugere uma remistura de elementos que provêm do já executado.
Com o resultado dessas práticas aclama-se nascer o novo uma vez que este se introduz como tal e porque, de facto, é novidade. Os mais puritanos estremecem quando se lhes impõe esta ideia porque afirmam que o novo não pode partir de máquinas que apenas recolhem elementos já executados. Nesse caso, qualquer composição contemporânea (dentro das mais variadas artes) seria uma farsa. E no fundo, não o será? Utilizam-se, adaptam-se, mexem-se, apropriam-se e transformam-se os componentes de uma (ou várias) composições para se atribuir uma nova leitura, uma nova interpretação do(s) elemento(s) primordiais.
E que elementos primordiais podem ser estes? Dir-se-ía acertadamente que tudo e nada. Porque para algo ser considerado primordial (primordial vem de primeiro, primo – único; sem igual), e embora a partir do momento em que nasce se torne único, esse algo necessita de um ponto de partida, de um nascimento. E é esse momento que define a novidade.
Ao mesmo tempo e como a própria raiz etimológica da palavra indica, a partir do momento que se mexe nalguma coisa, essa mesma coisa passa a ser uma outra coisa - Tudo se gera a partir de algo e, como tal, tudo se desenvolve a partir de vários pontos de partida que por sua vez têm outros pontos de partida. Sem que isso implique uma noção de evolução, de progresso artístico. Apenas se vão explorando elementos a partir de novos rumos, novos campos, novas linguagens.
A arte e a vida tinham de nos conduzir a este ponto quando se propôs o industrial e o massificado, se é que não foi sempre isso. Sempre nos apoderámos do que é dos outros e do já feito, para o transformar, afirmando-o como se fosse nosso. E de facto, não passa a ser?
Quando Duchamp expôs um urinol virado ao contrário, afirmando ser uma “fonte”, estava a fazer isso mesmo. Descontextualizou um elemento que passou a ser outra coisa, quando mudado de sítio. Atribuiu-lhe um nome que nada tem que ver com o fim para que foi executado e, assinando-o, afirmou ser uma composição sua. E não era?
A arte e a vida são feitas de recortes e de apropriações, pequenas dentadas do que vemos e do que aprendemos, engolidas e digeridas por cada um. Nada é novo porque já existe de alguma forma mas tudo passa a ser novo, quando se medita e se mexe no assimilado.

Miguel Godinho

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