A música das nossas vidas
Há tempos tive esta conversa com uns amigos e agora, quando li no Público o artigo de Vítor Belaciano [de 29 de Outubro de 2006], achei que era uma boa altura para escrever sobre o assunto. O tema da conversa e do artigo andavam à volta do excesso de música na actualidade, sobre a forma como a experimentamos e em que medida isso nos afecta. Referia-se naquele texto o facto do acesso à música estar hoje em dia demasiado facilitado e ser muito mais imediato. À distância de um clíque. Afirmava-se a necessidade de procurar a qualidade da experiência e não da quantidade, admitindo-se no entanto, a dificuldade em procurar essa mesma qualidade no meio das infinitas possibilidades. Por fim, concluía-se que o problema não está na proliferação da música mas na maneira como ela pode e deve ser consumida. Não poderia estar mais de acordo.
Antes de mais, possuir e ouvir música implica uma gestão das escolhas e das aquisições. Poderá então falar-se da necessidade de uma “dieta musical”, tal como refere Belaciano? Penso que sim. É necessário escolher, ainda que, muitas das vezes, tal seja impossível. Se pensarmos bem, já ouvimos música em todo o lado, muitas vezes imposta. Na rua, no centro comercial, na loja de roupa, no telefone (em espera), no supermercado, no elevador. No entanto, escutar a música que é imposta é uma coisa e incorporá-la nas nossas vidas é outra. Mas o que é certo é que de alguma forma essas imposições sempre nos afectam…
Há uns anos atrás, mais ou menos na altura em que apareceram os gravadores domésticos de CDs e em que na Internet se começou a disponibilizar muita música grátis, dei por mim a gravar tudo aquilo que me parecia agradável ao ouvido, passando grande parte dos meus dias a ouvir e a extrair música da web e a arquivá-la no computador e/ou CDs. Atitude que, agora me apercebo, não muito exigente (porque desregrada) e que muitas vezes resultava de escolhas que não eram totalmente voluntárias. Muitas vezes procurava na Net coisas que tinha ouvido num sítio qualquer, talvez mesmo numa loja de roupa, quem sabe? Mas, quanto a mim, a descoberta musical também passa por aí. Por outro lado, esse acesso a um leque muito grande de escolhas provocou com que a minha capacidade de selecção ficasse reduzida porque não estava habituado a lidar isso. E até conseguir perceber que não podemos usufruir tudo, andei meio baralhado, meio confuso com tanta opção. A certa altura, comecei a reparar que tinha uma colecção de CDs tão grande que, por vezes, quando os colocava no leitor nem sabia bem o que é que estava a tocar. Muitos (a maioria) nem capa tinham (porque o site não a disponibilizava), alguns nem sabia sequer o nome. Deve dizer-se que muita dessa música era simplesmente virtual, não tinha suporte físico (não a transportava para CD) e agora percebo que, pelo menos no meu entender, a música não pode ser somente virtual, tem de ter um suporte em que possamos agarrar, tocar e colocar no leitor, em que seja possível folhear o livro de apresentação do artista. Nessa altura, achava por bem gravar tudo, adquirir tudo, arquivar tudo, mesmo que não gostasse muito. Hoje em dia, a atitude é bastante diferente.
Tal como acho que ler um livro a partir de fotocópias não é exactamente a mesma coisa que folhear a obra, também acho que um CD precisa de ser original. É também por isso que nos identificamos com ele (que saudades do vinil!...). E como um original custa dinheiro (principalmente neste país!), não se pode ter tudo. E a atitude de tentar ter tudo implica uma certa desordem mental, uma incapacidade na gestão dos afectos, dos gostos. Assim, a minha maneira de resolver o problema foi passar a comprar somente originais. As escolhas passariam assim a ser mais apuradas porque só compraria aquilo que realmente gostasse e com o qual me identificasse. E resultou que passei a renunciar àquilo que gosto “mais ou menos” para passar a comprar unicamente aquilo que “gosto mesmo”. Nesse sentido acho que não importa de onde provêm as nossas escolhas porque, na realidade, nada nos é imposto mas sim proposto. Ainda assim, acho que há ambientes onde o silêncio faz muito mais sentido…
O facto de haver hoje em dia muita música e muita facilidade (talvez até demais) em aceder a ela não é, portanto, problemático, pelo menos no meu entender. É sinal de que existem mais criadores, uma maior facilidade na sua exposição e, por isso, mais formas de sentir a própria realidade uma vez que, por isso também, se nota um acesso facilitado a um conjunto de sensações que resultam dessa combinação música-ambiente-indivíduo. Assim, mais do que coleccionar tudo, o importante é coleccionar a música que faz parte de determinado período, determinada vivência ou momento da nossa vida, independentemente da forma como nos foi proposto. Para que possamos pegar nisso num outro momento da vida e vermos que tem uma contextura real e está associado a uma memória ou a um período da nossa vida. Assim, fará sempre sentido, em qualquer altura e em qualquer lugar. E, na maioria das vezes, isso não é possível com a musiquinha que nos dão no supermercado.
Miguel Godinho
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