terça-feira, agosto 28, 2007

Abismo

Como era hábito, ela enroscava-se mansamente no sofá enquanto ele dedilhava, absorto, as teclas do computador – ela folheando uma revista, ele compondo infindáveis poemas.

Era o hábito de sempre. O mundo ficava, inteiro, lá fora e a intimidade reinava, em silêncio.

Dessa vez, porém, ela pousou a revista e ficou a olhá-lo. Intensamente. Enternecida. Longo tempo.

Deixa-me saber o que escreveste.

Ele um sobressalto. Pancada de gelo. Náusea. E depois, em voz arrancada, a leitura sussurrada do poema. Grande e ácido, compulsivo, um poema de solidão, feito de muros implacáveis, desencantos e securas. Nele jazia, irremediavelmente excluído, o poeta que o lia. E era autêntico, o poeta, na angústia do seu dolorido fiel.

Afundava-se a madrugada, corriam, punhais, os versos pela sala.

Silenciosa, hirta, ela ergueu-se e saiu. Como se nunca ali tivesse entrado.

Carlos Pinto Coelho, Magazine Artes, nº53, Agosto 07, p.26.

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