O cinema da Encarnação
Lembro-me do meu tio, cheio de vida, a desafiar o meu pai quando lá íamos a casa para ir beber um copo de vinho ao cinema da Encarnação. Esse cinema não passava filmes, o próprio sítio era um filme. Daqueles antigos, a preto e branco, mudos, com cenários de salas cheias de fumo, toda a gente a gesticular muito, uma banda sonora muito agitada. Eu era pequeno mas recordo-me bastante bem. Era o local onde se encontravam (e encontram) os amigos lá da zona. Um género de grémio associativo onde se jogava às cartas, dominó, onde se fumava e bebia. Muito. Falava-se da vida. O meu tio ria, falava alto, gritava mesmo, desafiava toda a gente. Nunca foi uma pessoa muito próxima mas por ser um sujeito muito alegre, gostava dele. Fazia-me sentir bem, brincava comigo. Tenho pena. Tenho muita pena. Fui encontrá-lo há pouco tempo confinado a um quarto onde havia um prato cheio de rebuçados, numa Clínica de Cuidados Paliativos em Idanha, num estado que se afasta em muito dessa memória que tenho dele. Não somos nada. Tão depressa estamos bem, como de um momento para o outro caímos a pique para o chão, por vezes sem ninguém que nos ampare a queda. Felizmente não é este o caso. Não somos realmente nada.
Acho que o tal cinema ainda funciona, pelo menos agora quando lá fui ainda vi a mesma agitação na zona, depois de tantos anos. Descobri o mesmo corrupio de senhores de meia-idade (e mesmo jovens) que lá confluem em busca do conforto dos amigos, esses amigos que parece que lá estão sempre, nunca saindo verdadeiramente do sítio. É uma rotina diária. É quase uma família. Vão a casa mas regressam sempre, todos os dias. Por isso nunca chegam verdadeiramente a sair de lá. No fim do dia vão a casa, não vão para casa.
A zona da Encarnação continua a mesma. A família cresceu, eu cresci. Mas houve uma pessoa que desapareceu entretanto. A minha tia. O meu tio está a desaparecer. Não somos nada. O cinema sente a falta dele. E eu sinto que devia ter sentido a falta dele quando ainda me conseguia reconhecer. Vim meio tristonho da clínica porque é sempre doloroso encontrar uma pessoa assim. Mas lembrei-me que a família mais próxima está praticamente todos os dias com ele e que no cinema da Encarnação toda a gente se lembra dele como se ainda continuasse a descer aquelas escadas todos os dias, para ir beber o seu copito de vinho com a malta amiga e dar dois dedos de conversa. Fiquei mais aliviado e, antes de me vir embora e de o deixar a repousar, peguei num dos rebuçados daquele prato que se encontra no quarto onde por agora descansa.
Miguel Godinho
Lembro-me do meu tio, cheio de vida, a desafiar o meu pai quando lá íamos a casa para ir beber um copo de vinho ao cinema da Encarnação. Esse cinema não passava filmes, o próprio sítio era um filme. Daqueles antigos, a preto e branco, mudos, com cenários de salas cheias de fumo, toda a gente a gesticular muito, uma banda sonora muito agitada. Eu era pequeno mas recordo-me bastante bem. Era o local onde se encontravam (e encontram) os amigos lá da zona. Um género de grémio associativo onde se jogava às cartas, dominó, onde se fumava e bebia. Muito. Falava-se da vida. O meu tio ria, falava alto, gritava mesmo, desafiava toda a gente. Nunca foi uma pessoa muito próxima mas por ser um sujeito muito alegre, gostava dele. Fazia-me sentir bem, brincava comigo. Tenho pena. Tenho muita pena. Fui encontrá-lo há pouco tempo confinado a um quarto onde havia um prato cheio de rebuçados, numa Clínica de Cuidados Paliativos em Idanha, num estado que se afasta em muito dessa memória que tenho dele. Não somos nada. Tão depressa estamos bem, como de um momento para o outro caímos a pique para o chão, por vezes sem ninguém que nos ampare a queda. Felizmente não é este o caso. Não somos realmente nada.
Acho que o tal cinema ainda funciona, pelo menos agora quando lá fui ainda vi a mesma agitação na zona, depois de tantos anos. Descobri o mesmo corrupio de senhores de meia-idade (e mesmo jovens) que lá confluem em busca do conforto dos amigos, esses amigos que parece que lá estão sempre, nunca saindo verdadeiramente do sítio. É uma rotina diária. É quase uma família. Vão a casa mas regressam sempre, todos os dias. Por isso nunca chegam verdadeiramente a sair de lá. No fim do dia vão a casa, não vão para casa.
A zona da Encarnação continua a mesma. A família cresceu, eu cresci. Mas houve uma pessoa que desapareceu entretanto. A minha tia. O meu tio está a desaparecer. Não somos nada. O cinema sente a falta dele. E eu sinto que devia ter sentido a falta dele quando ainda me conseguia reconhecer. Vim meio tristonho da clínica porque é sempre doloroso encontrar uma pessoa assim. Mas lembrei-me que a família mais próxima está praticamente todos os dias com ele e que no cinema da Encarnação toda a gente se lembra dele como se ainda continuasse a descer aquelas escadas todos os dias, para ir beber o seu copito de vinho com a malta amiga e dar dois dedos de conversa. Fiquei mais aliviado e, antes de me vir embora e de o deixar a repousar, peguei num dos rebuçados daquele prato que se encontra no quarto onde por agora descansa.
Miguel Godinho
1 comentário:
Como é triste mas ao mesmo tempo lindo e terno o que escreveste.
Sou muito apegada à minha família e por vezes fico em baixo por ver o destino de alguns...
Adorei a analogia do Cinema da Encarnação ao teu Tio. Para não me esquecer das pessoas também busco algo na minha memória (música, espaços, cheiros...) para as manter vivas.
Um Natal cheio de coisas boas, muita paz e toda a família reunida.
Beijos grandes, daqueles tão grandes que são do tamanho de um Cinema :) :P
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