Ainda que imaginemos mundos (13)
É quase noite. E na derradeira claridade do dia
uma fadiga invisível perturba a paz de uma memória inocente:
tu diante de mim, como se fossemos eternos.
Tudo aconteceu numa dormência antiga,
às vezes parece que em resultado de uma vontade alheia.
Estes últimos raios de luz cintilam no horizonte
e ofuscam-me o olhar, mas ainda vejo, lá longe, o mar.
Consigo escutar o som das ondas e o rumor dos pássaros:
um cenário que me traz de volta
o teu olhar mortífero, aquele olhar de sangue.
Tanto havia para dizer. Mas eu não sabia dizer.
Como haveria de saber dizer aquilo que só agora sei dizer?
Há uma obscuridade remota nas memórias que tenho de ti
que sempre regressa nesta altura do ano,
quando os dias se tornam menores e a luz do dia fica mais frouxa.
Recordo-me num silêncio irreal, como num sonho antigo.
Mas as imagens são tão claras e translúcidas
e os contornos da tua face tão nítidos.
Queria dizer-te palavras de amor, dizer-te que
ainda te sinto da mesma forma, dizer-te que continuas aqui
e que esse carinho que só tu me sabias dar
está tão presente quanto esta imagem que agora regressa, outra vez.
Eu devia ter uns oito anos e tu, uns vinte e quatro.
Foi um final de ano frio, aquele, e no turbilhão da memória
ainda consigo sentir a chuva a invadir-me o cabelo.
É impressionante como a percepção que tenho do momento
consegue até trazer-me o teu cheiro de volta:
uma mistura de âmbar e lavanda,
um cheiro antigo e ondulante de um amor materno e primeiro,
nem sei bem como explicar. Sei apenas que era verdadeiro,
tão verdadeiro quanto esta memória.
Recordo-me de tudo na perfeição e imagino-te de novo aqui
mas reconheço a impossibilidade. Partiste sem aviso,
sem nada dizer, sem um último adeus.
Como dói agora, a tua ausência.
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