Crónica publicada no Jornal do Baixo Guadiana (Dezembro 2009)
Os nossos dias
Perguntaram-me há dias se estava disposto a escrever para este jornal uma crónica sobre o livro de poesia que editei há pouco tempo. A princípio não achei muito boa ideia porque poderia parecer que queria explicá-lo e, como saberão, um livro de poesia não se explica. No entanto, como dei uma entrevista há pouco tempo para outro jornal, pensei pegar, como ponto de partida, em algumas afirmações que constam na mesma e desenvolver as ideias que, no fundo, estão na base daquilo que o livro trata. Isto dito assim, parece que não me largam, o que não é verdade, que fique bem claro. Nem sei tão pouco se essa mesma entrevista saiu cá para fora (adoro esta expressão: sair para fora) porque não me avisaram em que número seria publicada nem se o jornal existe mesmo, pois nunca tinha ouvido falar dele…Mas adiante.
O livro, que é o meu primeiro, na sua essência, grita que somos iguais todos os dias, e é isso que realmente nos incomoda, que incomoda a minha geração. Parece-nos que a vida é assim e que será sempre assim: monótona e aborrecida. É um mal desta geração que nasceu e cresceu sem preocupações de maior. Estamos enfadados e movemo-nos por vontades cujas motivações desconhecemos. Poderá então dizer-se que o que deste livro (e também desta crónica) saiu resulta nem sei bem do quê, da vida, talvez, da realidade, do sonho ou da falta dele. Talvez seja esse o grande problema da minha geração: a falta de um sonho maior. Pediram-me que escrevesse e foi isto que me apeteceu dizer, peço-vos desculpa. Aliás, é sempre isto que me apetece dizer: não sabemos muito bem - a minha geração não sabe muito bem - o que andamos aqui a fazer. Talvez apenas à espera de nós próprios.
A propósito da minha geração pouca coisa haverá a dizer. Vivemos divididos por uma apatia causada pelo vazio de um mundo de rotinas angustiantes (porque nunca as tivemos nem quem nos ensinasse a tê-las), um mundo carregado de estímulos e cada vez mais virtual e outro que ficou lá atrás algures no passado e que não volta mais. A juventude perdida, as loucuras adolescentes, a vida.
Os trinta acontecem agora num momento sério de transição dessa “vida” para a “vidinha”. De repente somos adultos, sérios e responsáveis e nunca ninguém nos ensinou a interiorizar a necessidade de assim o sermos. A arrogância, a inveja e a hipocrisia que reinam neste mundo real do dia-a-dia a vir ao de cima e nós desarmados. E sofremos porque o interessante da vida ficou na adolescência, no mundo dos sonhos inocentes. Perguntam-me então o que se pode esperar da vida e deste livro que agora editei: talvez um livro negro mas não derrotista, provavelmente apenas um livro de confronto comigo próprio e pouco mais. A vida a olhar-me nos olhos. A vida transposta para o papel. Os trinta que já não são os vinte e muito menos os dezoito. Mas são quase. Os quarenta serão assim também. Será?
Desde que me lembro, a minha escrita sempre funcionou como uma espécie de auto-terapia. Sempre escrevi para dizer a mim próprio. E, nesse sentido, acho que este livro foi, como não poderia deixar de ser, mais uma tentativa de procura interior, uma tentativa de chegar àquilo que realmente sou, de questionamento daquilo que me faz feliz, daquilo que fui e do que quero ser. Acho que faz falta pensarmo-nos mais, questionarmo-nos, olharmo-nos ao espelho, para que percebamos com mais clareza quem somos, de onde vimos, para onde queremos ir. Essa procura pode ser às vezes uma tarefa complicada: podemos deparar-nos com aquilo que durante muito tempo não quisemos ver. Mas servirá sempre para nos situarmos melhor na realidade em que nos inserimos. Do confronto entre aquilo que acontece no dia-a-dia com a memória, dá-se o choque e é por isso que o livro é composto por duas partes: “Os nossos dias” seguido de “Os lugares antigos”. É a partir do choque resultante do confronto desses dois momentos que nos situamos na vida. É disso que fala a minha poesia e é disso que fala o livro.
De repente temos trinta e somos exactamente a mesma pessoa. A questão é que agora já estamos integrados num mundo completamente diferente: a determinada altura apercebemo-nos de uma maneira violentíssima que este mundo das pessoas adultas, distintas, sérias e responsáveis é um mundo agressivo, é um mundo de brilhantinas. E, no fundo, a grande dificuldade da vida (e a minha grande dificuldade, ultimamente) é lidar com isso, é integrar-me nesse mundo, nesse mundo do qual também faço parte, do qual sou parte.
Apesar de agora publicar este livro, acho que pouco sei sobre literatura, não tanto como queria. Gosto de ler e leio o que vem ao meu encontro. E, como disse, escrevo porque sinto necessidade de dizer a mim próprio. Conheço alguma coisa dos clássicos mas o que gosto mesmo é dos poetas franceses do final do século XIX e dos portugueses do século XX. Há também muito bons poetas portugueses ainda vivos e em acção, muitos fazem parte da minha geração, e falam de temas com os quais me identifico: do tédio, da dissimulação, do absurdo, da vida. Aos trinta anos (outra vez a história dos trinta) já conheci grandes poetas que nunca pegaram numa caneta. Tenho grandes amigos que são dos maiores poetas que já conheci, e nem sequer sabem que «há» de «haver» se escreve com «h». Acho que a poesia existe nos olhos de quem a vê e sente, não na caneta de quem a escreve e, nesse sentido, sinto-me bem por ter sido capaz de pôr no papel aquilo que sinto, sem pretensões.
Para terminar, poderei dizer que o livro terá uma conclusão implícita: por causa da perda irreparável da adolescência, da impossibilidade de retorno aos sonhos da juventude, haverá sempre um vazio que nos acompanha, um vazio para a vida. Seremos sempre nós a olharmos para nós e, como diria Ruy Belo, sempre cães “fustigado(s) a farejar a fuga / desta diária saga que nos suga”. Só nos resta um caminho: o de tentarmos ser felizes, pelo menos aos olhos de nós próprios. Os outros dirão de sua justiça, se quiserem. E nós acreditamos ou somos felizes. Das duas, uma.
Perguntaram-me há dias se estava disposto a escrever para este jornal uma crónica sobre o livro de poesia que editei há pouco tempo. A princípio não achei muito boa ideia porque poderia parecer que queria explicá-lo e, como saberão, um livro de poesia não se explica. No entanto, como dei uma entrevista há pouco tempo para outro jornal, pensei pegar, como ponto de partida, em algumas afirmações que constam na mesma e desenvolver as ideias que, no fundo, estão na base daquilo que o livro trata. Isto dito assim, parece que não me largam, o que não é verdade, que fique bem claro. Nem sei tão pouco se essa mesma entrevista saiu cá para fora (adoro esta expressão: sair para fora) porque não me avisaram em que número seria publicada nem se o jornal existe mesmo, pois nunca tinha ouvido falar dele…Mas adiante.
O livro, que é o meu primeiro, na sua essência, grita que somos iguais todos os dias, e é isso que realmente nos incomoda, que incomoda a minha geração. Parece-nos que a vida é assim e que será sempre assim: monótona e aborrecida. É um mal desta geração que nasceu e cresceu sem preocupações de maior. Estamos enfadados e movemo-nos por vontades cujas motivações desconhecemos. Poderá então dizer-se que o que deste livro (e também desta crónica) saiu resulta nem sei bem do quê, da vida, talvez, da realidade, do sonho ou da falta dele. Talvez seja esse o grande problema da minha geração: a falta de um sonho maior. Pediram-me que escrevesse e foi isto que me apeteceu dizer, peço-vos desculpa. Aliás, é sempre isto que me apetece dizer: não sabemos muito bem - a minha geração não sabe muito bem - o que andamos aqui a fazer. Talvez apenas à espera de nós próprios.
A propósito da minha geração pouca coisa haverá a dizer. Vivemos divididos por uma apatia causada pelo vazio de um mundo de rotinas angustiantes (porque nunca as tivemos nem quem nos ensinasse a tê-las), um mundo carregado de estímulos e cada vez mais virtual e outro que ficou lá atrás algures no passado e que não volta mais. A juventude perdida, as loucuras adolescentes, a vida.
Os trinta acontecem agora num momento sério de transição dessa “vida” para a “vidinha”. De repente somos adultos, sérios e responsáveis e nunca ninguém nos ensinou a interiorizar a necessidade de assim o sermos. A arrogância, a inveja e a hipocrisia que reinam neste mundo real do dia-a-dia a vir ao de cima e nós desarmados. E sofremos porque o interessante da vida ficou na adolescência, no mundo dos sonhos inocentes. Perguntam-me então o que se pode esperar da vida e deste livro que agora editei: talvez um livro negro mas não derrotista, provavelmente apenas um livro de confronto comigo próprio e pouco mais. A vida a olhar-me nos olhos. A vida transposta para o papel. Os trinta que já não são os vinte e muito menos os dezoito. Mas são quase. Os quarenta serão assim também. Será?
Desde que me lembro, a minha escrita sempre funcionou como uma espécie de auto-terapia. Sempre escrevi para dizer a mim próprio. E, nesse sentido, acho que este livro foi, como não poderia deixar de ser, mais uma tentativa de procura interior, uma tentativa de chegar àquilo que realmente sou, de questionamento daquilo que me faz feliz, daquilo que fui e do que quero ser. Acho que faz falta pensarmo-nos mais, questionarmo-nos, olharmo-nos ao espelho, para que percebamos com mais clareza quem somos, de onde vimos, para onde queremos ir. Essa procura pode ser às vezes uma tarefa complicada: podemos deparar-nos com aquilo que durante muito tempo não quisemos ver. Mas servirá sempre para nos situarmos melhor na realidade em que nos inserimos. Do confronto entre aquilo que acontece no dia-a-dia com a memória, dá-se o choque e é por isso que o livro é composto por duas partes: “Os nossos dias” seguido de “Os lugares antigos”. É a partir do choque resultante do confronto desses dois momentos que nos situamos na vida. É disso que fala a minha poesia e é disso que fala o livro.
De repente temos trinta e somos exactamente a mesma pessoa. A questão é que agora já estamos integrados num mundo completamente diferente: a determinada altura apercebemo-nos de uma maneira violentíssima que este mundo das pessoas adultas, distintas, sérias e responsáveis é um mundo agressivo, é um mundo de brilhantinas. E, no fundo, a grande dificuldade da vida (e a minha grande dificuldade, ultimamente) é lidar com isso, é integrar-me nesse mundo, nesse mundo do qual também faço parte, do qual sou parte.
Apesar de agora publicar este livro, acho que pouco sei sobre literatura, não tanto como queria. Gosto de ler e leio o que vem ao meu encontro. E, como disse, escrevo porque sinto necessidade de dizer a mim próprio. Conheço alguma coisa dos clássicos mas o que gosto mesmo é dos poetas franceses do final do século XIX e dos portugueses do século XX. Há também muito bons poetas portugueses ainda vivos e em acção, muitos fazem parte da minha geração, e falam de temas com os quais me identifico: do tédio, da dissimulação, do absurdo, da vida. Aos trinta anos (outra vez a história dos trinta) já conheci grandes poetas que nunca pegaram numa caneta. Tenho grandes amigos que são dos maiores poetas que já conheci, e nem sequer sabem que «há» de «haver» se escreve com «h». Acho que a poesia existe nos olhos de quem a vê e sente, não na caneta de quem a escreve e, nesse sentido, sinto-me bem por ter sido capaz de pôr no papel aquilo que sinto, sem pretensões.
Para terminar, poderei dizer que o livro terá uma conclusão implícita: por causa da perda irreparável da adolescência, da impossibilidade de retorno aos sonhos da juventude, haverá sempre um vazio que nos acompanha, um vazio para a vida. Seremos sempre nós a olharmos para nós e, como diria Ruy Belo, sempre cães “fustigado(s) a farejar a fuga / desta diária saga que nos suga”. Só nos resta um caminho: o de tentarmos ser felizes, pelo menos aos olhos de nós próprios. Os outros dirão de sua justiça, se quiserem. E nós acreditamos ou somos felizes. Das duas, uma.
Miguel Godinho
O livro “Os nossos dias seguido de Os lugares antigos” foi editado pela Editora 4 Águas em Agosto de 2009.
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