quarta-feira, março 12, 2008

Fazia-lhe espécie [Ainda em relação a Punta Umbria...]

Fazia-lhe espécie o facto de quererem abater uma série de palavras ao poema, com o pretexto de que assim ele viveria melhor. Como se o poema não só fizesse sentido para ele daquela forma, como se o que aquelas palavras quisessem dizer não completassem o que ele próprio queria dizer, como se se pudesse amputar o poema alegando que, dessa forma, ele caminharia melhor...

Miguel Godinho
[Em jeito de provocação ao Fernando Esteves Pinto e ao Manuel Domingos]

9 comentários:

manuel a. domingos disse...

imagina antes um poema com roupa a mais. roupa a mais, às vezes, sufoca.

eu gosto de tirar a roupa ao poema e deixá-lo só com o essencial. para mim é todos os dias verão na poesia... tenho sempre calor.

abraço

Anónimo disse...

nem de propósito, o comentário do domingos. pedi-lhe a ele que comentasse primeiro, e agora reparo que a minha ideia se aproxima da dele.

imagina, godinho, que estás diante dum espelho (poema)a verificar a roupa que vestiste uma manhã qualquer. se pensares que tens roupa a mais, tiras. se achares que uma das peças de vestuário não é condizente com o resto da indumentária, substituis, não é? ora, num poema passa-se o mesmo. a ousadia do poema (e do poeta) é vestir-se com as suas próprias roupagens (palavras) tanto no paraíso como no inferno. um bom poema é imune à mudança.

fep

Anónimo disse...

O estudo do comportamento, face às variações de temperatura, de todas as formas existentes no universo conhecido, estão fundamentadas sobre parâmetros de natureza antropocêntrica. Quero dizer, nem tudo é da mesma maneira. Por exemplo, o álcool etílico (CH3CH2OH) entra em ebulição aos 35-36ºC (acho) e a água (H2O) só aos 100ºC. Para uma pedra de granito se tornar líquida, é preciso muito, mesmo muito mais.

" a ousadia do poeta (ou do poema) é vestir as suas próprias palavras..." significa isso mesmo.

joão bentes

Anónimo disse...

mesmo com muito calor há que conservar as roupas. Já viram os homens do deserto? Eles sabem, eles são nómadas.

E depois há outra coisa: desde cedo é o poema quem manda e se te manda tirar tu tiras, se ordena te manter tu manténs. Se assim não for, é porque algum outro poder que se intromete. No caso das roupas costuma ser a moda. Ou então a maezinha a dizer: "olha que está muito calor na rua!" ou "olha que está um frio de rachar."

Pedro Afonso

Anónimo disse...

no comentário anterior leia-se:
"se te ordena manter" e "é porque há algum outro poder que se intromete"

Pedro

Anónimo disse...

o artigo no público vem reforçar a ideia que eu e domingos defendemos.
por mais que esta prática seja desconfortável para o autor, a verdade aí está.

fep

Miguel Godinho disse...

É. Mas é sempre passível de ser problematizada. Porque nem sempre a fronteira entre o que autor acha que deve ser dito e "o que se lhe sugere" que diga está clara. Claro que o "autor tem sempre razão" e "as sugestões" são geralmente bem vistas mas os motivos que geram essas sugestões podem também ter outros porquês... E uma visão poética sobre a coisa (em jeito de provocação) sabe sempre bem. Mais que não seja para gerar estas discussões...

Anónimo disse...

o desconforto ou o conforto do autor depende muito do que é que representa a sugestão.
Como digo no comentário ao que o Miguel "provoca" no meu blog: há escever e escrever livros. Há o sugerir o "apuro" do texto e o facilitar a "digestão" do produto. É necessário distinguir entre as duas coisas.
Não creio nunca que seja desconfortável discutir os textos (sinto essa necessidade tanto como escrevê-los), mas o grande problema põe-se no objectivo da discussão: o dirigi-lo para uma linha predeterminada (anterior ou extra o próprio texto) ou o reforçá-lo (melhorá-lo, apurá-lo no que ele tem de si).
O artigo do "ipsilon" também dá razão a quem diz que o que é publicado deve ser pre-digerido pela tendência de mercado, chegando aos leitores (e ultrapassando o autor) uma ideologia determinante e dominadora.

Pedro Afonso

Anónimo disse...

resumindo, acho que há duas coisas que não devem, que não podem ser confundidas:
1_ A Obra é inestimável, e só quem a escreve poderá dizer quanto;
2_A edição de uma Obra, tanto no que diz respeito a um aperfeiçoamento como à correcção do que eventualmente seja falível quando subjugado às leis do mercado, é uma questão de circunstância. é por isso que há editores e editores (ou edição e editing, se é que não temos, em português, uma palavra que defina tal "acção").

Como o pedro diz: "Há o sugerir o "apuro" do texto e o facilitar a "digestão" do produto."

Não se deve confundir, também, o que é editar um livro de poesia ou um romance, muito menos escrever um deles que seja. São duas coisas substâncialmente diferentes (mas talvez não tanto nos tempos que correm em que tudo se confunde).

Apenas certo do que entendo ser na escrita como a procura de uma autenticidade, e de que a ninguém vale se não a mim, duvidando de um nada que aconteça, mas com o que o orgulho ou a destreza me permitem, para não dizer algo mais assustante (gosto desta palavra), termino citando Ruy Belo, em TODOS OS POEMAS (I), Assírio & Alvim, 2ª Edição, 2004, na página 17:
"Não se deve, não se pode pedir ou exigir ao autor de um livro, por mais filólogo que seja, que examine o seu rebento ou o seu dejecto numa perspectiva estrutural ou paracientífica ou que ceda mesmo à tentação de ser sistemático, o que, pelo menos, talvez o levasse a traduzir-se na própria língua ou a praticar uma literatura segunda, para mais quando se tem a vaga suspeita de que se não é Dante ou S. João da Cruz.
É claro, até para mim, que de inocente pouco tenho pelo menos como poeta (...)"

João Bentes