quarta-feira, maio 28, 2008

Os nossos dias (11)

Uma fatiota de segunda a sexta
e a mentira evidente na ordem dos dias
lembro-me disso quando me deito
de barriga para cima na secretária
e quando cumpro tarefas
em projectos essenciais

(a minuta já está completa, senhor engenheiro
falta apenas o senhor engenheiro assinar)

uma faca nas mãos do tempo
a assassinar a métrica dos dias
tenho ganho muitas rugas nos testículos
por mil euros ao fim do mês
acho que os neurónios já se esqueceram de respirar
pelo menos consigo pagar os créditos
e ser feliz ao fim de semana

Miguel Godinho

sábado, maio 24, 2008

[“O mais profundo é a pele”]

É esta a fina pele que me separa dos outros
uma membrana que transpira
o meu nome inscrito
na efemeridade das circunstâncias

queria fender as palavras e a vida
para senti-la de outra forma
e percorrer a calosidade escondida nessas pesquisas
nessas ideias que me renovam

Miguel Godinho

[Ao Pedro Afonso, a Deleuze e a Foucault]

sexta-feira, maio 23, 2008

O cheiro metálico das axilas

Queria que a madrugada não cessasse de se branquear
enquanto o cheiro a penumbra não me percorresse todos os poros

e que eu sorvesse a nébula matinal de um só turno
consumindo a vida sem consequências

com esse pretexto se acenderiam os olhos para sempre
e se permitiria o olhar sem perturbações

um som misterioso continua a palmilhar a dormência nasal
enquanto me esqueço que existo

no cheiro metálico das axilas a verdade constrói-se
no momento em que se aprende a contemplar a mentira

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 21, 2008

O porquê das conversas (2)

Se eu tivesse certezas sobre quem sou

não haveria necessidade na escrita deste novo texto
não precisaria de me vasculhar por entre mais palavras

Se as convicções que me alinham fossem óbvias ao olhar
não arriscaria este texto vezes sem conta - já me lembrei
o porquê desta conversa

Miguel Godinho

terça-feira, maio 20, 2008

O porquê das conversas

Se eu tivesse certezas sobre quem sou

não haveria necessidade na escrita deste texto
não precisaria de me vasculhar por entre as palavras

Se as convicções que me alinham fossem óbvias ao olhar
não riscaria este texto vezes sem conta - já nem sei bem
o porquê desta conversa

Miguel Godinho

segunda-feira, maio 19, 2008

Os sonhos

Entorpeceste-te com a vida
e lambeste-me a mão, enfraquecido

uma descarga voltaica resolveria tudo - dizias
antes da pressão sanguínea se meter a mil
carregarias o cérebro de chumbo uma vez mais
olhando os dias por um funil

engoliste um comboio desgovernado
e deixaste que isso te revirasse o estômago
um vómito de realidade e ficarias melhor
comerias os dias com uma colher

sempre te perdeste na verdade
antes de acordares para um mundo pior
tudo aqui se vendia barato
e até os sonhos eram do melhor

Miguel Godinho

quinta-feira, maio 15, 2008

Os nossos dias (10)

Podíamos ser mais nós se o quiséssemos
seria fácil caminhar ordeiramente pelo devir
se nos importássemos realmente com isso,
se os procedimentos que nos tornam sociáveis
não fossem apenas sujeições

Se caminhar descalço na vida não implicasse
um corte num membro qualquer, então despia-me dos pés à cabeça
como costumo fazer sempre que me deito
a imaginar um novo mundo

pode ser que amanhã acorde na cama sem cabeça
e não consiga ir trabalhar

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 14, 2008

Os nossos dias (9)

Acabo sempre consumido
pelo grave odor a sexo entranhado na mente
enquanto escancaro a portinhola
para que te sirvas à vontade

uma aflição, a tua boca

após esse deboche nocturnal de fruta e chocolate amargo
caio bruscamente do azul do céu para o sofá
depois de te analisar por dentro

empurra-me para o lado como costumas fazer
acende um cigarro abre mais uma cerveja e liga a TV
lá fora chove como Deus a manda e eu aqui prostrado sem cuecas
à espera do fim de semana que nunca mais chega

queria apenas curar a ressaca dos dias
deitado para sempre contigo a fazê-lo
às vezes parece que alguém vai trabalhar todos os dias por mim
pois eu acho que nunca saí deste sofá

Miguel Godinho

terça-feira, maio 13, 2008

Mop Mop - Exotic nuJazz Combo

Uma proposta extremamente interessante...

sábado, maio 10, 2008

O caminho

Mesmo que me esqueça do teu nome
as raízes que me impedem de cair no asfalto
tentarão sempre perfurar o alcatrão dos dias
dançarei sempre ao som do batuque
pisando de pé descalço o caminho para a praia
ainda que a rota não esteja bem definida
ainda que o sol nem sempre ilumine o caminho

Miguel Godinho

sexta-feira, maio 09, 2008

Nas chuvas de Maio

Nas chuvas de maio
ainda o Inverno se impõe e
no roxo dos horizontes distantes
Faro a surgir
por detrás da nuvens, de frente para o mar

é sempre às terças, nas visitas-relâmpago
que a minha mãe me lembra da distância.
A minha irmã a abrir-me a porta da mesma forma
que quando lhe pedia asilo
(é sempre assim, sempre foi assim, não poderia agora não ser assim)
e a fechá-la duas horas depois
a perguntar-me quando voltas

nem os amigos tenho tempo para beijar
porque amanhã toca de novo o despertador
à hora do costume, antes de o sono me acordar


podia tão bem cagar para tudo isto
e render-me à Ria, como tu
dizes-me que chega bem para degustar a vida
tanto mais que tudo é mais fácil
de frente para o mar

Miguel Godinho

[ao João Bentes em particular, e ao pessoal de Faro, no geral]
Lê-se nos olhos (2)

Lê-se nos olhos senhora doutora
não é necessário dizer que não

uma cárie por detrás desse sorriso abrilhantado
num semblante estilhaçado de pertinácias
por detrás dessa estatura tão finamente arquitectada

sempre que a senhora se desenha perante os outros
engana-se a si muito antes de nos enganar
preenchendo-se de sonhos ridículos
num modelo de ilusões

caso não tenha entrevisto
a senhora está desprotegida, diante de todos,
e nem tão pouco se apercebe, minha donzela,

senhora dona imaculada

cada vez mais me toca a castidade
do seu discurso badalhoco

lê-se nos olhos, senhora doutora
não é necessário dizer que não

Miguel Godinho

quinta-feira, maio 01, 2008

Os nossos dias (8)
[Uma rodinha para inalar o futuro]

Nem sequer já sinto outro tempo
que não este
a percorrer-me a aorta
num rio de sensações seculares
a vergar-me a memória

Ò tempo volta para trás

Um coelho a correr por dentro de nós
e nós à caça dele como quem separa batatas
enquanto a pedra nos percorre a cabeça
(e que grande pedra)

deixemo-la pender (a cabeça)
como quem repousa
por debaixo da alfarrobeira
e resguardá-la por debaixo do tronco,
por debaixo da espinha vertebral
(e que grande pedra)
(e que grande espinha)

Por debaixo da pedra sai um lagarto
(e que grande lagarto)

Tomemos uma trip de TNT
e lavemo-nos na chuva que nos percorre a face
fechemos os olhos outra vez e olhemos em frente
Como se não houvesse amanhã

Uma rodinha para inalar o futuro
como quem dança uma modinha
e abraçar-nos a olhar o destino
com lágrimas de crocodilo

montemos o motociclo do tempo sem capacete
e gritemos:
NHAU

Miguel Godinho