segunda-feira, dezembro 31, 2007

A tormenta

Ainda nem tinha começado
e já querias que acabasse

os horizontes de fogo
as promessas de conquista do mundo
e as viagens a sítio nenhum

todas essas horas em que
te arruinavas em pensamentos
eram muitas horas

camuflavas os compassos diários
e as tarefas por cumprir

a vida

o bolor surgia-te nas goelas
e aqueles assombros nocturnos…

ainda nem tinha começado
e já querias que acabasse

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Do que se diz

Eles queriam apenas poder dizer “dissestes”
e “masturbas o sexo”
sem que ninguém lhes chateasse os cornos
com teorias da literatura
e conjecturas gramaticais

Cá para mim
(Que nenhum purista leia isto)
a linguagem (ou a língua, whatever)
é como um garfo
serve para comer
e encher a barriga

foda-se

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Da claridade

Sentiste a manhã em tons de cinza
antes dos olhos se abrirem
e tiveste receio que o acordar
fosse demasiado violento.

Neste último sonho da noite uma inscrição:
“bem vindo ao cantar das sombras,
no silêncio dos dias encontrarás as palavras
que te dirão quem és”

Mais uma visão da casa em ruína
e a consciência da plenitude
na escuridão cerrada dos sonhos
– uma calma em que te descobres
constantemente perdido, uma busca incessante
pelo nome das coisas, pelo teu nome.

A vida pareceu-te de repente uma estrada estreita
e a manhã que te desligava da poesia nocturna, uma ponte.

Talvez as respostas viessem só com a claridade
talvez as palavras que te diriam quem és
não existissem no mundo dos sonhos
talvez fossem apenas horas de acordar
para mais um dia

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Ainda os dezanove

Numa química transitória
esse teu olhar antigo na minha direcção

como se me sussurrasses despindo-me
com palavras surdas ao ouvido
trazendo de volta a arte da transgressão
dos dezanove.

Reavivas-me a nostalgia da tarde em que me vi
lá longe e logo depois tão perto
dentro de ti a olhar-te as entranhas,
dentro de mim e da minha inocência

não valias nada e ainda assim te recordo
em tons violeta numa mancha que o tempo insiste
em guardar numa das gavetas da memória


Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 19, 2007

No seguimento da proposta feita pelo Pedro Afonso (na qual me pedia para nomear os meus 6 filmes de eleição), respondida no primeiro post de ontem, esqueci-me de nomear um 7º que de maneira nenhuma poderia ficar de fora. Até porque se falamos da 7ª Arte, talvez não seja má ideia escolher 7 filmes (?). Assim sendo, e utilizando a mesma justificação que já foi referida nesse mesmo post, o meu 7º filme de eleição é:

Trainspotting - de Danny Boyle

terça-feira, dezembro 18, 2007

O cenário

Desbravámos atónitos os dezanove
de cigarro na mão
a olhar a ria de frente e a sua quietude
numa mansidão incendiada por horizontes de fogo.
Um barco que passava rasgava sempre
um percurso perpétuo
nas aquaestradas dos sonhos vespertinos
enquanto a vida se sucedia lá fora inquieta
e nós aqui alheios a tudo menos ao momento

talvez se colhendo nesses tempos a constância
ainda agora pudéssemos lá regressar
da mesma forma, com dezanove de novo
e ver as marés

Miguel Godinho
Aceitando o desafio do Pedro Afonso, aqui seguem então os meus 6 filmes de eleição. Devo dizer que os referidos encontram-se a par de muitos outros. No entanto, serão estes talvez aqueles que mais fortemente marcaram a minha personalidade. Quem me conhece e já viu os filmes saberá dizer porquê. Nesse sentido, foram parte integrante da minha aprendizagem da vida. Fazem por isso parte da minha maneira de ver hoje as coisas. Lições, portanto. É isso que retiro dos filmes.

Kids – de Larry Clark

Lost in translation – de Sofia Coppola

A Clockwork Orange – de Stanley Kubrik

Pulp Fiction – de Quentin Tarantino

La Haine – de Mathieu Kassovitz

Crash – de David Cronenberg

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Das ausências

Queria apenas que me tivesses deixado
explicar-te a carência
para que agora não necessitasse
desta conversa muda
ou da percepção da incapacidade em abordar ainda
e sempre este assunto

palavras que custam tanto a dizer e
há assuntos que são tão difíceis de recordar
como este que há tanto tempo tento discutir contigo pai

logo logo serei capaz
ou talvez nem valha a pena
talvez seja melhor levares contigo o meu silêncio eterno
afinal foi essa a tua maior lição
com os teus silêncios me ensinaste
a emudecer

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Tu antes de ti

Enterras-te nas areias movediças
num mergulho abrupto

penetras-te e destapas o negrume

o som metálico do nada

no fundo do abismo
e o escuro da noite

lembras-te de ti
antes de ti?

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Tânia Carvalho canta António Variações

Deixemos a música explicar o que as palavras não sabem

O nosso nome

O nosso nome
por debaixo do tronco
e da raiz secreta

ele há sempre alguém
que também se apaga
junto com a árvore

nesse momento
quando o som do derrube
introduz o silêncio perpétuo
não há direito a palavras

a eternidade encarrega-se
de as escrever numa outra língua
inteligível para nós
que por cá vamos ficando à espera
da nossa hora

Miguel Godinho

terça-feira, dezembro 11, 2007

Do alto dos oitentas

E então subitamente
enquanto rachava lenha
do alto das suas 82 primaveras
a imagem num relance devolvida pelo reflexo
da janela da velha carrinha:
a inocência adolescente
essa que não tarda custaria a lembrar
apertada pelo espartilho do tempo
como se numa plena visão de consciência

o tronco lhe pudesse saltar dos pés
e a serra
acidentalmente fender-lhe a memória
separando-o de vez desses vestígios
que já começavam a esgotar-se

A infância é breve, dizia-me
enquanto pegava de novo no cepo
e se absorvia na tarefa que
há praticamente 70 anos cumpre
todos os Invernos.

Miguel Godinho


[alterado por engano na versão]

segunda-feira, dezembro 10, 2007

A cidade branca

Na cidade branca tudo é mais nítido
as formas, as cores, os cheiros, eu
em mim, translúcido

nas breves formas da manhã austera
rasgada pelo violento endoidecer
eu em mim a olhar para mim
na cidade branca
a enlouquecer em mim
foda-se

Miguel Godinho

domingo, dezembro 09, 2007

O fogo

Esperarei sempre por ti no fogo. E lembrar-me-ei sempre da dor que nos marcava. Sabia bem que o teu nome era fácil de pronunciar e que muitas eram as rosas no meu colo.
- Por onde andas hoje à noite?

Insisto em vociferar uma vez mais o teu nome na fria noite que se ergue. Se a chuva não cobrisse a vidraça desta forma os meus olhos arderiam nas chamas desta memória.

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Tunning

Nos cruzamentos verbais
as palavras dizem-se
a alta velocidade

Miguel Godinho