Antes que seja tarde demais
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1. Nunca sabemos quão perto estamos do fim. Nos vários domínios da vida, estamos todos tão ligados por esta certeza. Todos. Tudo. Uma relação que parece tão harmoniosa e que, de um momento para o outro, se interrompe, acaba; um ser que, possuidor de uma vida aparentemente interminável mas que, sem razão consistente, falece; uma verdade tão coerente e que, de momento para o outro, é aniquilada por outra mais certeira.
2. Passamos a vida a ser surpreendidos pela vida. É o vizinho que deixou a mulher, depois de tantos anos em comum, dois filhos, um relacionamento estável, ninguém diria; o irmão que nunca teve problemas de saúde, tinha deixado de fumar há um ano, assim que fez trinta – conforme prometido, ganhara o hábito de correr na mata dia sim, dia não. De repente, um problema grave detectado num exame de rotina, seis meses de vida, no máximo, uma desgraça.
3. A vida prega-nos partidas, sabemo-lo, puxa-nos o tapete a toda hora mas somos os primeiros a irritar-nos com as partidas que a vida nos prega, dona e senhora de um mundo que parece rolar desgovernado, sem um curso pré-definido, sem uma mão aparente, sem dó de ninguém. E toda a gente espera por um sinal que preceda a decadência, por uma preparação apropriada, uma despedida que seja, antes de uma partida não anunciada, um adeus antes do fim.
4. Tarde demais percebemos que quase nunca fomos capazes de ouvir as palavras ditas em silêncio, de sentir os sinais, entender os indícios, de ler nas entrelinhas, de perceber o que estava diante dos nossos olhos. A vida corre a uma velocidade que não nos deixa perceber os avisos. Se ao menos nos permitissem uma visão mais apurada, essas forças ocultas que mandam no mundo. Mas tudo vai correr bem. Amanhã será um novo dia. Acalma-te. Tenta relaxar que amanhã será um novo dia. Ainda que o pessimismo das horas que passam nos queira fazer crer o contrário, amanhã será um novo dia. O mundo não pára de girar, tudo se repete, isto roda mas volta sempre ao mesmo lugar, é uma volta de 360 graus, tudo se irá repetir, noutras coordenadas, num outro dia, outras caras, outra realidade.
5. Passamos metade da vida à espera que a vida passe e outra metade à espera que ela se detenha. Corremos atrás do tempo não para apanhá-lo mas para que ele não nos deixe para trás, não nos passe a perna, para que não se esqueça de nós. E é tão fácil perdermo-nos na imensidão das nossas rotinas, nos instantes das nossas escolhas, tantas vezes imponderadas, na seriedade das coisas às quais atribuímos tanta importância mas que não têm importância nenhuma. Tantas vezes nos orientamos num caminho errado, damos atenção a quem não nos quer como devia. E quando damos por nós estamos gastos, envelhecidos, denegridos pelo sonho que deixámos voar, já cá não está quem amávamos.
6. A nossa vida não é só a nossa vida. É muito mais que isso. É fácil esquecermo-nos de coisas, factos, memórias, de pessoas que fazem ou fizeram, num determinado momento, parte da nossa vida. E é tão simples inventarmos mil e uma maneiras de nos olvidarmos que somos parte daqueles que nos aturaram ou aturam todos os dias, devemos-lhes muito, muito mais do que aquilo que achamos que devemos, somos uma parte deles, somos o que somos por causa deles. Lembremo-nos da nossa enorme capacidade de nos surpreendermos, de nos maravilharmos com um sorriso amigo, de estendermos a mão a alguém que precise dela. A vida é aquilo que quisermos fazer com ela, que soubermos fazer dela, antes que seja tarde demais, antes que nos apercebamos «das coisas que perdemos no fogo», antes que os dias que passam passem e não voltem mais. E não voltem mais.
Publicado no Jornal do Baixo Guadiana (Março 2012)
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