quarta-feira, maio 17, 2006

Lendas de Mouras Encantadas – a recuperação de um património imaterial

Na semana inaugural da exposição “Mouras Encantadas e Tesouros” (inserida no projecto “Mouras Encantadas e os encantamentos no Algarve”) patente no recém-criado Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, torna-se necessário reafirmar a importância que projectos deste tipo assumem para a recuperação e revitalização deste património imaterial tão valioso, especialmente nesta região.
Numa tentativa de registar e reanimar a memória que esta zona possui sobre esta realidade, procura-se de uma forma alternativa à tradicional, uma vez que esta já não se processa antes - de frente para a lareira, durante os longos serões sem televisão ou Internet, fazê-la transitar para as gerações mais jovens, quer através da própria exposição, quer através das restantes actividades de todo o projecto (apresentação de lendas recorrendo a performances lúdicas, exibições de diaporamas interactivos sobre a presença islâmica, nas escolas da freguesia, recolha de lendas junto dos mais velhos, apresentação de jogos didácticos).
Através de uma linguagem adequada às gerações mais novas, o projecto aventura-se na tentativa de desenvolver nas crianças um primeiro contacto com as lendas e com o imaginário relacionado com o “universo mouro”, numa tentativa de transportar o passado para a atmosfera do presente, cruzando-o com a disponibilidade dos mais jovens na recepção do imaginado e do fantástico.
Entroncadas num contexto que logicamente alude para um passado islâmico, estas heranças são reflexo de uma memória comum que se conserva há tantos séculos no misterioso mundo do imaginário popular, tendo continuadamente, ao longo dos séculos, vindo a transformar-se e a reinventar-se, satisfazendo a necessidade de transitar por gerações e gerações, até aos nossos dias. Está no entanto, nos últimos tempos, de alguma forma ameaçada a sua continuidade, em resultado das alterações operadas no modo de estar familiar e comunitário. Praticamente já não existem serões em família, os mais velhos (que detinham a sabedoria oral) já não assumem a importância que avocavam no seio familiar. É também por isso que projectos deste tipo são tão importantes: para além de darem continuidade à circulação geracional de um património, promovem ainda o contacto dos mais jovens com as gerações mais velhas. Assim, tentam “a partir de restos (...) colocar o presente, em suposta continuidade com o passado” e, assim, contrariar “(...) a característica das sociedades modernas, homogéneas” que “é precisamente esse corte com o passado, com o heterogéneo, com o invisível”, como diria Marc Guillaume.
Numa sociedade como a actual (que tem alguns problemas em lidar com o tempo) torna-se importante “adequar” o passado aos modos actuais de apreensão, sem que nesse intento se procure simplesmente “facilitar” a compreensão dos fenómenos. Aquilo que por assim dizer está “facilitado” é apenas o acesso ao seu universo. Como se afirmou, já não existem os serões em família, os mais jovens já não procuram aprender com os mais velhos, quer porque os mesmos já não estão presentes como estavam antes, quer porque já não são vistos como uma fonte de sabedoria. E se já não existem esses contextos em que se processava a assimilação deste património oral, torna-se muito difícil que continuem a transitar no tempo da mesma forma (que transitavam). A vida das pessoas e dos mais jovens tornou-se solitária. Os processos de aprendizagem e de assimilação são mais complexos e, portanto, há que adequá-los a estas novas exigências sem que se os transforme numa “obrigação” de assimilação de um passado simplesmente pelo seu “peso”...
Como tal, resta apenas agradecer às entidades que tornaram possível este projecto não sem antes fazer um balanço (ainda que muito provisório) da primeira semana de contacto com as escolas da freguesia de Vila Nova de Cacela, dizendo que todas as crianças adoraram a visita ao Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela (local onde decorre uma das três actividades do projecto). Se nenhuma delas conhecia ou sequer sabia o que eram “Mouras Encantadas” quando entrou no Centro, à saída todas elas foram capazes de criar uma peça teatral sobre a temática, com enredo criado pelas próprias.
Foi por assim dizer, para todos, e certamente continuará a ser, com o desenvolvimento das restantes actividades, muito positiva a experiência.

Miguel Godinho

2 comentários:

Anónimo disse...

Belo projecto Miguel! Adorei.
Beijos grandes e bom trabalho!

Anónimo disse...

Considero-me afortunada por, ainda hoje, ouvir as repetidas histórias da minha avó e tentar tirar delas o maior proveito possível...Não tanto de lendas, mas de pequenos acontecimentos pessoais que me revelam tanto do passado que é tão presente...
à minh avó devo o gosto pelo passado e espero, com o tempo, poder vir a contar as minhas próprias histórias às gerações mais novas...
Esse corte com o passado que falas é lamentável, pois já dizia o nosso professor Rosa Mendes, "nós não somos simples gatinhos..." se é que me entendes ;)
Pequena grande iniciativa, num meio em que mt poucos resolvem apostar.
parabéns
Beijinhos