quinta-feira, agosto 29, 2013

nunca nada alguma vez

o ideal era um dia sermos capazes de inverter o processo: começarmos primeiro pela memória amarga, percorrermos então o desgosto amoroso, a escoriação, depois, aí sim: apaixonarmo-nos perdidamente, reservarmos aquela luz que nos cegou num primeiro instante para o último momento e de repente virarmos a cara e nem sequer percebermos que nunca nada alguma vez nos aconteceu - nada: desconhecermo-nos absoluta e completamente
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mg 2013

quarta-feira, agosto 28, 2013

um dedo médio

e talvez em descobrindo aquilo que te põe realmente radiante, te devas deixar consumir por isso, deixa que isso te mate, deixa-te morrer assim, bem devagar, devagarinho, e com certeza morrerás mais feliz se esticares um dedo médio bem esticadinho, com a palma da mão encolhida e virada para cima, sempre que sintas que te querem mal, que te desejam mal, que sintas que te estão a menosprezar
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mg 2013

quarta-feira, agosto 21, 2013

o coveiro está à coca

Luiz Pacheco // GEORGE, João Pedro (2011) - "Puta que os pariu! A biografia de Luis Pacheco", Tinta da China, Lisboa.

isto que eu tenho agora

então não há por aí alguém que me explique porque é que a vida nos troca sempre as voltas, é perita em derrubar-nos as convicções, pois que eu nunca me imaginei pai de filhos, uma pessoa com responsabilidades, deveres de gente adulta – e já serei eu adulto? é que parece que cada vez mais a veia paternal toma conta de mim, se apodera das minhas determinações, são tantas as saudades do puto logo depois que dele me separo que a verdade é que há uma franca vontade de lhe dar uma irmã, de me oferecer muitas mais dores de cabeças destas, eu quero é fazer-me velho rodeado disto que tenho agora que é muito bom e está bem assim
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mg 2013

terça-feira, agosto 13, 2013

quinta-feira, agosto 08, 2013

todos gostamos muito

ainda assim, parece-me que serão sempre muitos os interessados em prosseguir com a sua banal vidinha: falando mal de toda a gente desde que se levantam até que se deitam, quando a sua própria vida não é mais do que uma fiel reprodução da vida dos outros, lixar tudo e todos, porque a desgraça alheia é a sua mais sincera razão de satisfação; serão sempre muitos os que continuam a preferir passar horas, dias, anos, vidas inteiras enfiados em gabinetes recônditos, envoltos em papéis e mais papéis, afundados em toneladas de conteúdos irrelevantes, sem nunca terem tempo nem vontade nem disposição para a família, para depois um dia perceberem que nunca foram sequer capazes de olhar os filhos nos olhos ou perceber a razão de estes nunca terem conseguido relacionar-se emocionalmente com eles; e, segundo parece, todos gostamos muito de andar a chorar o estado do mundo sem que nunca tenhamos tentado fazer nada por ele, todos gostamos muito de andar a lamentar a situação em que nos encontramos sem que nunca tenhamos tentado fazer nada por nós
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mg 2013

sexta-feira, agosto 02, 2013

o mundo era aquilo que nós quiséssemos

conseguias deixar-me sempre tão desarmado com as tuas ideias simples sobre a vida que levávamos, sobre os dias que me pareciam tão vazios, dias desertos, dias que se prolongavam interminavelmente, nós sentados, tardes inteiras sentados junto à linha do comboio a olhar a ria e os barcos que de um lado para o outro rasgavam as águas, sentados à espera que o amanhã chegasse, quem disse que o amanhã nunca haveria de chegar, quem disse que esses dias não haveriam de dar lugar a dias diferentes, tu a esclareceres que o mundo era assim porque éramos jovens e estávamos entediados, o mundo não seria sempre assim, o mundo era aquilo que nós quiséssemos que o mundo fosse, haveríamos de descobrir que o mundo se viria a tornar naquilo que nós quisemos, que há sempre uma altura para tudo, cada vez me convenço mais que há uma altura para tudo, que o mundo de facto se torna naquilo que nós desejamos, as escolhas somos nós que as fazemos, a responsabilidade é nossa, ainda que nem sempre tenhamos consciência que a responsabilidade é nossa
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mg 2013

quinta-feira, agosto 01, 2013

as borbulhas dos dezoito

e viver às vezes mais parecia ser uma forma de sobreviver, de aturarmos os dias, de permanecermos à espera que alguma coisa acontecesse, que o tempo transfigurasse o vagar da realidade: era preciso combater a serenidade do mundo, oferecer-lhe resistência, e como adorávamos subverter os minutos, anarquizar as horas, as longas horas de espera, nunca mais acontecia nada, nunca mais era outro dia, queríamos tanto que fosse outro dia, que os dias se sucedessem, mas era tudo tão lento, era tudo tão demorado, e para onde foi essa morosidade?, para onde?, tudo isso parece agora tão distante apesar de se conservar tão presente, os dezoito, aquela tranquilidade em colisão com as nossas revoltas interiores: aquilo foi uma idade tão lixada, as borbulhas dos dezoito, os tumultos adolescentes, as primeiras desilusões de amor, as enormes decepções de amor, as cicatrizes que ainda são visíveis, a descoberta da perversidade das pessoas, a necessidade de invenção de uma personalidade adulta, a ausência de instrumentos adequados para lidar com o mundo, e eis que aqui me encontro agora, mas onde é que eu estou agora? onde é que eu estou agora?
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mg 2013